Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural em 20 de fevereiro de 2014.
“Tempo, trocas, deslocamentos, convivência, isolamento, dedicação, mobilidade, contatos pessoais e culturais são aspectos relevantes e significativos apontados por todos os artistas – em conversas e depoimentos – e que colocam a residência artística vivida por eles como uma experiência transformadora e, antes de qualquer coisa, de introspecção, também pela busca de sua própria relação com o mundo”. Dessa forma Marcos Moraes, coordenador dos cursos de Artes Plásticas e de Produção Cultural e do Programa de Residência Artística da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP, sintetiza a experiência de uma residência artística.
O especialista se refere a espaços específicos de criação artística que se convertem em lugares de trocas e de reconhecimento, nos quais os artistas e criadores, com seus trabalhos e intervenções, recuperam a complexidade e a diversidade, o significado e o valor das relações entre arte e vida. “Nesse sentido, é preciso pensar sobre esses processos de criação, em deslocamento, como forma contemporânea de produção, na qual conceitos como participação, troca e vida coletiva se tornam peças fundamentais em uma estratégia de atuar como mecanismo de colaboração com a cena artística local e, ainda, como meio de dinamização e circulação de informação e conhecimentos”, afirma Moraes.
Já Thereza Farkas, diretora de programação da Associação Cultural Videobrasil, instituição que mantém a Rede Videobrasil de Residências, e co-fundadora da Casa Tomada, acredita que o principal papel das residências é promover o deslocamento. “Antes da própria ideia de residências artísticas se consolidar, o deslocamento sempre foi transformador no percurso do artista. A partir daí começa um processo de troca e transformação. Pensando em uma escala global, é impossível dizer que a produção não tenha sido afetada pelo deslocamento. Há um impacto na própria geografia, ampliação de fronteiras. Esse fluxo, hoje em dia, é vital à arte contemporânea”, avalia.
Segundo Farkas, são processos que dizem respeito tanto ao artista quanto à instituição que promove o intercâmbio. “Ambos se ‘impregnam’ a partir desse contato, gerando um ambiente de formação continuada, pesquisa, produção e difusão”, diz a curadora ao destacar que a residência, em geral, é um programa local, mas inserido em uma rede global, uma dicotomia que enriquece a experiência.
Um panorama
Uma visão panorâmica sobre a situação das residências artísticas brasileiras ressalta, segundo Moraes, a fragilidade de estrutura na área. Para o especialista, o número efetivo de residências artísticas em território nacional é bastante reduzido. Entre as experiências no Brasil, Moraes destaca a do Capacete Entretenimentos, no Rio de Janeiro, embora já extinta, e a do Instituto Sacatar, em Itaparica, na Bahia. Entre 2003 e 2006, o programa exo residências acolheu artistas, sociólogos, escritores, cineastas e arquitetos de várias cidades e países, que ocuparam, por períodos entre um e três meses, apartamentos no Edifício Copan, no centro de São Paulo. Na mesma região, a Residência Artística FAAP recebe, desde 2005, artistas que, entre dois e cinco meses, desenvolvem seus trabalhos e pesquisas.
Moraes acrescenta, ainda, ao rol de projetos brasileiros em atividade, o Bolsa Pampulha, que propõe residências de artistas ao longo de um ano em Belo Horizonte, período ao final do qual são apresentadas séries de mostras com os resultados do processo. Também integra o panorama traçado pelo especialista o surgimento, a partir de 2006, de outras propostas e programas brasileiros de residência como o do Museu de Arte Moderna da Bahia; o do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife; a Bolsa Iberê Camargo; e projetos como os da Casa Tomada, o Red Bull station, Phosphorus e o programa de residência da Associação Videobrasil. “Ainda surgiram outras iniciativas, incluindo a mais recente do Ministério das Relações Exteriores em parceria com a FAAP, estabelecendo um programa de residência para artistas brasileiros em localidades de países BRICS – Rússia, Índia, China e África do Sul –, já iniciado com a etapa da Índia, para a qual foram enviados dois artistas em 2013”, completou.
Farkas concorda que são ainda muito poucos os programas de residência artística brasileiros consolidados. Ela observa, porém, que, a partir do crescimento econômico que o país experimentou nos últimos anos e da visibilidade que o circuito de arte brasileiro ganhou a partir daí, muitos pequenos projetos estão sendo montados e já ganham destaque. A trajetória até este momento, no entanto, foi cheia de obstáculos. “Sair do país era um problema, e voltar também: artistas que produzissem obras no exterior não podiam trazer seus trabalhos ao Brasil até a década de 1990, por conta das leis de importação de produtos. As limitações culturais também eram evidentes. Jovens artistas, há alguns anos, tinham muita dificuldade de conceber a ideia de largarem suas vidas por alguns meses com o único intuito de produzir, enquanto essa prática já era comum na Europa e nos Estados Unidos. Mesmo nos dias de hoje é complicado trazer um artista estrangeiro ao Brasil para um programa de residência, as embaixadas brasileiras não conseguem entender que um artista não pode ter um visto normal de turista ou de trabalho para participar de um programa pensado para durar meses”, disse a curadora.
As residências e as cidades
Em São Paulo, o Edifício Lutetia, projetado por Ramos de Azevedo e construído na década de 1920, é um marco da arquitetura eclética predominante, em sua época, no centro da capital paulista. Tombada em 1992, a edificação é a sede do Programa de Residência Artística – FAAP. “Essa localização produz, necessariamente, um deslocamento dos artistas pela região, por distintas e diversas razões, colocando-os em direto contato com as atividades, com as condições e com a vida que se desenrola naquelas condições”, disse o coordenador do programa.
“Há projetos selecionados exatamente porque se propuseram a discutir, refletir e intervir, de alguma forma, naquele contexto, como foi o caso de Marco Zero, que se propôs a criar situações de diálogo e ações com os moradores em situação de rua da Praça da Sé. Há ainda artistas que, em contato direto com essa realidade, acabaram por incorporá-la em suas investigações, como é o caso de Shimabuku, artista japonês que produziu, para a 27ª Bienal de São Paulo, leitura de seu trabalho por repentistas com os quais encontrava todos os dias, se apresentando na rua Direita e na Praça da Sé. Ou ainda a artista Lara Almarcegui, que desenvolveu distintos projetos de mapeamentos da cidade – terrenos baldios, material utilizado para construir a cidade, entre outros –, também apresentados na 27ª Bienal, que ainda contou com Francesco Jodice produzindo um vídeo da série Citytellers sobre São Paulo”, contou Moraes.
Residências em rede
Além de estimular o deslocamento de artistas, o programa de residências da Associação Cultural Videobrasil, segundo Farkas, visa o fortalecimento de uma rede colaborativa entre instituições, com foco, em particular, nos deslocamentos entre os eixos Sul-Sul e Sul-Norte. “Para nós, esse processo de troca com regiões do Sul geopolítico – nosso atual foco de atuação, que compreende América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Europa do Leste, Sul e Sudeste asiático e Oceania –, sempre visando a partilha e a hospitalidade, foi uma forma de ampliarmos nosso trabalho no universo da arte em países de difícil trânsito. O que não é tarefa fácil, já que ainda hoje temos muita dificuldade para conseguir vistos para artistas de certas regiões menos privilegiadas economicamente, ou com contextos políticos mais fechados”, explicou a curadora.
Bernardo Vianna / Blog Acesso