Publicado originalmente em VIA blog – Direitos da Criança e do Adolescentes em 22 de outubro de 2014. Reproduzido no site da Rede Nacional de Defesa do Adolescente em Conflito com a Lei – Renade.
No Brasil, todo cidadão é responsabilizado por atos que o coloquem em conflito com a lei a partir dos 12 anos de idade. Até os 18 anos, por ser o adolescente considerado ainda em fase de formação, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a responsabilização por meio de medidas socioeducativas de diversas naturezas. Para evitar retrocessos nesse marco legal, a Rede Nacional de Defesa do Adolescente em Conflito com a Lei – Renade, por meio de seu Plano de Incidência Política, busca intervir em projetos de lei e atua diretamente junto a parlamentares e organizações de defesa de direitos.
De acordo com Mônica Brito, coordenadora política da Renade, as ações de incidência da rede preocupam-se, em especial, com três projetos de lei: a PEC 33/2012, o PDS 539/2012 e o PL 7197/2002, matérias relacionadas à redução da idade penal ou sua flexibilização por meio de medidas que alteram as punições aplicadas a adolescentes. “Esses três são os projetos de lei que mais nos assustam”, comenta Brito. Confira, a seguir, a entrevista concedida pela especialista.
VIA Blog – O que é a Renade?
Mônica Brito – A Renade é uma rede composta por segmentos estratégicos da defesa, adolescentes, famílias, defensores públicos e centros de defesa de direitos. Essa rede tem como tema central a justiça juvenil e o propósito dela é fortalecer esses atores para que possam desenvolver ações coletivas. Nessa perspectiva, temos três eixos de atuação: mobilização e articulação, diálogo com o Estado e visibilidade e comunicação.
VIA Blog – E o que é o Plano de Incidência Política?
M. B. – A linha da incidência política no parlamento é onde é posto o diálogo com o Estado. A nossa perspectiva, então, é atuar nessa incidência para que nós não tenhamos um retrocesso no marco legal. Já publicamos um documento com um parecer técnico sobre a PEC 33, a PDS 539 e agora soltamos uma carta com mais de 120 assinaturas de organizações e entidades dizendo que essas organizações não votam em candidatos que tem como bandeira a redução da maioridade penal. É um documento que saiu exatamente dessa incidência política no parlamento, que é cotidiana e que busca a sensibilização dos assessores de parlamentares que têm uma visão mais retrógrada.
VIA Blog – Como se dá essa atuação?
M. B. – Por meio de pareceres, de reuniões com parlamentares, participamos de reuniões das próprias comissões. Também publicamos artigos, livros, materiais que apresentam uma leitura e uma análise de cenário da situação de todos os projetos de lei que dizem respeito à justiça juvenil e que tramitam na perspectiva do retrocesso em relação ao que está atualmente posto em termos de direitos humanos. Essa tem sido nossa atuação, ainda tímida, pois é um espaço difícil para a articulação e mobilização por conta do próprio jogo político partidário e de interesses pessoais. Você fica muito frágil por conta desses interesses econômicos, pessoais e partidários que povoam o parlamento. Mas conseguimos acesso a partir daqueles deputados que têm uma visão mais progressista, mais alinhada com os direitos humanos.
VIA Blog – Qual seria o impacto desses projetos sobre os índices de violência juvenil?
M. B. – Os indicadores mostram que, nos últimos 10 anos, a prática de ato infracional por adolescentes tem diminuído. Tínhamos uma taxa alta na década de 1990, mas já no século 21 houve uma redução bastante considerável. Não há correlação direta entre violência urbana, insegurança nas cidades e a prática de ato infracional por adolescentes. E se os atos infracionais não são cometidos, na sua grande maioria, por adolescentes, só por esse ponto pode-se começar a refletir se de fato essa medida vai reduzir a violência e contribuir para a consagração de uma sociedade de paz. Não vemos isso nesse sentido.
VIA Blog – Onde, então, se daria o impacto desses projetos de lei?
M. B. – O impacto da redução da maioridade penal se daria sobre a própria adolescência, mas não em prol de uma maior segurança pública. Pelo contrário, trata-se de uma mensagem forte dizendo que a sociedade criminaliza a adolescência e a juventude. Não há porque pensar em reduzir a idade penal se não são os adolescentes os maiores autores ou os maiores colaboradores para a insegurança pública nas cidades. Mas o que nós observamos é que há uma tendência clara, no parlamento, atendendo um clamor da sociedade, pela própria dificuldade de uma leitura política mais aprofundada, de encarceramento da juventude. A questão, portanto, não é a redução da criminalidade, mas a intolerância em relação à juventude e à adolescência.
VIA Blog – As unidades socioeducativas atuais são capazes de atuar nessa perspectiva de garantia de direitos?
M. B. – De modo geral, as unidades que atendem adolescentes, ou as medidas socioeducativas de uma maneira ampla, seja em meio aberto ou fechado, não realizam ou não estão alinhadas com o seu propósito. Então, se hoje temos flagrantes, denúncias e situações graves de violação de direitos civis, econômicos, políticos e sociais dos adolescentes, imagine com a redução da idade penal, decidida sem nenhum dado concreto.
VIA Blog – A lei que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase foi sancionada em 2012. Não seria o caso de investir em sua efetivação antes de pensar em reduzir a idade penal?
M. B. – Sem dúvida. Nós temos uma lei que foi aprovada há bem pouco tempo para reordenar e estabelecer os parâmetros de todos os atores do sistema de garantias na execução das medidas socioeducativas. O que deveria ser feito é estabelecer os indicadores para avaliar a execução dessa nova lei e poder criar estratégias para que ela de fato seja assegurada. Essa lei veio justamente para determinar quais são as funções do sistema de garantia de direitos, pois, na verdade, a questão não eram os adolescentes, mas a execução das medidas socioeducativas. A lei veio exatamente disciplinar essa discricionariedade que havia em atribuições de juízes, promotores, defensores, gestores públicos, enfim, de toda a sociedade, que acabava violando os direitos dos adolescentes durante a apreensão, durante a apuração e durante a execução das medidas socioeducativas. Não era o adolescente que estava inadequado, a questão eram justamente as várias práticas inadequadas e desalinhadas com o marco legal brasileiro e o marco legal internacional do qual o Brasil é signatário. Então, a partir desse cenário, que tem mostrado que os equívocos são da própria rede que deveria proteger, e não dos adolescentes, temos aí mais um indicador de que nós não temos que reduzir a idade penal. Temos é que criar condições para que o Sinase possa de fato ser implementado.
VIA Blog – O que falta para a real implementação do Sinase?
M. B. – Se passaram dois anos e não temos nem uma matriz de indicadores para verificar o quanto evoluímos em relação à implementação do Sinase, não tem nem como mensurar isso. Temos que ter um referencial de indicadores para poder nortear essa avaliação. É uma incoerência aprovar uma lei instituindo o Sinase e, em seguida, haver essa perspectiva de reduzir a maioridade penal sem mesmo uma avaliação do sistema.
Bernardo Vianna / VIA Blog