Publicado originalmente em VIA blog – Direitos da Criança e do Adolescentes em 2 de outubro de 2014.
De volta ao debate público por ocasião das campanhas eleitorais, propostas de redução da maioridade penal são vistas com preocupação por organizações dedicadas à proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. A ideia já é discutida pelo Congresso brasileiro, em diferentes momentos, desde a década de 1990 e, segundo levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, em 2013, em torno de 40 propostas legislativas a tem como tema ou estão a ela relacionadas.
Para melhor entender a questão, o VIA Blog conversou com o juiz Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, da Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional da Lapa e membro da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Confira, a seguir, a entrevista concedida pelo magistrado.
VIA Blog – Para o senhor, qual seria o impacto da redução da maioridade penal sobre o envolvimento de adolescentes em situações de conflito com a lei? A medida seria capaz de reduzir índices de violência?
Reinaldo de Carvalho – Penso que a redução da maioridade penal em nada auxiliará na redução dos índices de violência. É fato que a criação de leis que aumentam o prazo de penas para determinados crimes em nada contribuíram para a sua diminuição. Tome-se, por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos, que agravou sobremaneira a pena cominada a determinados crimes, bem como agravou a forma como a pena deve ser cumprida. Se verificarmos as estatísticas relacionadas a esses crimes, veremos que não diminuíram nem deixaram de existir. Reduzir a maioridade penal é a mesma coisa, o adolescente não irá deixar de cometer ato infracional ou crime por temer a segregação. O que fará com que os índices de violência juvenil diminuam é a existência de políticas públicas que possam criar opções aos jovens para não incidirem em condutas antissociais, é o apoio às famílias para que possam criar seus filhos com um mínimo de dignidade e um tratamento adequado aos jovens que já infracionaram, para que não cometam o mesmo erro.
É preciso, ainda, que o sistema policial tenha condições materiais e preparo para que possa investigar os crimes ocorridos e levar para a justiça os seus autores. Fala-se muito em “sensação de impunidade”, mas é certo que essa sensação não decorre do tamanho da pena ou medida socioeducativa aplicada. Para o adulto ou o adolescente, o tamanho da pena ou medida socioeducativa não o intimida. A “sensação de impunidade” decorre da quase certeza de que a autoria do crime ou ato infracional não será descoberta, e que o autor do ato não será punido.
Reduzir a maioridade penal não resolverá o problema da violência juvenil, apenas se dará à sociedade uma satisfação e falsa sensação de que estará mais segura. Mera ilusão. Posso concordar que a permanência de jovens ou adultos encarcerados impedirá que estes cometam novos crimes enquanto presos, mas é preciso lembrar que um dia eles serão soltos e não será o medo da segregação que os impedirá de cometer novos crimes.
VIA Blog – A lei que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE foi sancionada em 2012. O sistema pode ser considerado como plenamente implementado? Investir em sua melhoria não seria uma linha de ação anterior a reduzir a maioridade penal?
R. C. – O sistema criado pelo SINASE ainda está em fase inicial de implantação. O Plano Nacional implementado pelo SINASE apenas recentemente foi aprovado, sendo que os Estaduais e Municipais são dele dependentes. Ainda não existem unidades de internação em número suficiente para receber os adolescentes que cometem atos infracionais, nem uma política psicopedagógica eficiente aplicada dentro das unidades. Infelizmente ainda se utiliza a mera segregação como forma de socioeducar, o que nem de longe se aproxima das diretrizes do SINASE.
Poucos são os estados que oferecem unidade de internação em condições dignas de habitabilidade. O que se dizer, então, de ofertar condições mínimas de escolarização, profissionalização ou apoio psicológico para que os adolescentes possam resolver suas questões psicossociais e buscar outra forma de conquistar seus sonhos que não seja através da ilusão do dinheiro fácil decorrente da conduta infracional ou criminosa?
Seria importante que se divulgasse o resultado do “Programa Justiça ao Jovem”, do Conselho Nacional de Justiça, realizado a partir de 2010, onde se pode constatar a realidade do sistema de internação no país. A realidade é catastrófica. Importante salientar que, alertadas as autoridades estaduais da lastimável realidade, pouco ou nada foi feito para melhorar o sistema. Acompanhe-se o que está ocorrendo no estado do Maranhão ou de Alagoas.
O SINASE só terá sua eficácia assegurada quando os governadores dos estados acreditarem que vale a pena investir no sistema socioeducativo, fazendo dele um exemplo. Aplicar no jovem é muito mais barato que investir em cadeias ou penitenciárias, ou aumentar indefinidamente o contingente policial.
Os Municípios, em sua grande maioria, não dispensam qualquer cuidado com a aplicação das medidas socioeducativas em meio aberto (Prestação de Serviços à Comunidade ou Liberdade Assistida). São programas que existem apenas no papel, em nada auxiliando o adolescente a resolver seus problemas pessoais e familiares, para seguir novo rumo em sua vida.
O Sistema Socioeducativo é caro? É, mas sem investimento, não se colherão bons frutos no futuro. Ou se faz a opção política do investimento na infância e juventude, ou se arque com as consequências futuras. O que não se pode é punir quem não contribuiu para as consequências. A infância e a juventude descuidadas não podem pagar pela opção feita pelos adultos, sejam eles os representantes políticos, os representantes da comunidade ou os próprios pais.
VIA Blog – É comum serem usados casos de crimes graves cometidos por adolescentes como argumento favorável à redução da maioridade penal. Organizações de defesa de direitos, no entanto, argumentam que esses casos são exceções ou que, estatisticamente, representam número pequeno em relação ao total dos adolescentes que seria afetado pela redução da maioridade penal. Que análise o senhor faria sobre esses argumentos?
R. C. – Efetivamente, os dados estatísticos da Fundação Casa, relativos ao Estado de São Paulo, são irrefutáveis. Menos de 1% dos adolescentes internados cometeram atos infracionais de grande gravidade. Os demais 99% cometeram atos infracionais de menor gravidade, que, em relação aos adultos, não lhes acarretaria uma pena de segregação, ou, em acarretando, seria de curtíssima duração.
A medida socioeducativa de internação tem a sua duração por prazo indeterminado, mas restrita ao máximo de três anos. A conduta do adolescente e o seu esforço são os parâmetros para o encerramento da medida. Quantos adultos cumprem, efetivamente, uma pena de três anos em regime fechado? Acredito que, no mais das vezes, o adolescente estaria a cumprir medida de segregação superior ao que cumpriria o adulto.
O prejuízo à maioria dos adolescentes seria incomensurável. É preciso que se entenda que a segregação, em que pese a sua necessidade em determinados casos, não resolve o problema da violência.
VIA Blog – Também já foram apresentadas alternativas como a ampliação do tempo de internação ou a possibilidade de o adolescente ser julgado como adulto em determinados casos (PEC 33). Qual sua avaliação sobre essas propostas?
R. C. – São propostas que merecem uma análise profunda, não apenas por juristas ou especialistas em segurança pública. É preciso que outras áreas do saber participem dessa discussão. É preciso que psiquiatras, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais participem dessa discussão de forma efetiva. O que precisamos saber é o que representa para o adolescente o maior tempo de internação, se isso lhe trará algum benefício futuro, ou apenas o afastará do convívio social por mais tempo.
VIA Blog – Como o senhor vê o argumento de que, atualmente, aos 18 anos ou mesmo antes, o adolescente já tem plena consciência de seus atos?
R. C. – Muita confusão se faz atualmente com relação ao adolescente, uma vez que hoje em dia se considera que a pessoa não entra na fase adulta antes dos 26 anos de idade. Confunde-se a quantidade de informação que um adolescente possuiu na atualidade com a sua capacidade de compreensão e consequência daquilo que faz com essas informações. Antes disso, em termos de maturidade, ele ainda não está formado. Afetivamente não alcançou a sua independência, sua personalidade ainda está se constituindo. Ainda é uma pessoa em formação, e por isso mesmo passível de aprender as consequências de seus atos. Não basta ele saber o que é certo ou errado. É preciso que ele compreenda o que determinada conduta irá acarretar na vida de terceiros ou em sua própria vida. Sem a consciência da consequência de seus atos, eventual punição não terá maior repercussão na sua avaliação daquilo que fez ou deixou de fazer.
Esse é o fator que faz com que a medida socioeducativa deva ser entendida de forma diametralmente oposta à pena. Uma visa a correção, outra a punição – entendendo-se que a punição faz parte da correção.
Finalizando, acredito que antes de se discutir a redução da maioridade penal, se deva discutir o que se pretende da nossa infância e juventude. Porque não se discutir a aplicação expressiva e suficiente para que o sistema socioeducativo em meio aberto seja uma realidade e não uma ficção? Porque não se discutir a importância da escolarização para o controle da violência? Porque não se discutir a necessidade da implementação de políticas públicas que deem condições para que as famílias possam cuidar de seus filhos com dignidade e lhes propiciar uma infância e adolescência sadia, única forma de se prevenir a violência infanto-juvenil? Será que é porque criança e adolescente não vota?
Bernardo Vianna / VIA Blog