Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural em 28 de março de 2014.
Composta por artistas, agentes de salvaguarda do patrimônio cultural, organizações não governamentais, empresas e outras instituições, além de comunidades, redes e movimentos, a Rede das Culturas Populares e Tradicionais articula debates e promove ações para a promoção das expressões culturais populares e tradicionais e para sua proteção como patrimônio imaterial. A origem da rede remonta às ações, ainda na primeira metade da última década, do Fórum para as Culturas Populares e Tradicionais – então atuante em São Paulo, embora hoje seja uma instituição de âmbito nacional – e do Fórum de Culturas Populares, Indígenas e Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro.
Entre essas ações, foi realizado, em 2005, o I Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, iniciativa conjunta da então recém-estruturada Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura. Pelo alto grau de participação da sociedade, o seminário viria a se tornar referência para a construção de programas e ações governamentais para a área. Sobre a promoção e proteção das expressões culturais populares e tradicionais e sobre a atuação da rede, o Acesso conversou com o sociólogo Marcelo Manzatti, que preside o Fórum para as Culturas Populares e Tradicionais.
Acesso – O que diferencia e caracteriza os conceitos de folclore, cultura popular e cultura tradicional?
Marcelo Manzatti – Essa pergunta é bem complicada de se responder porque há uma história já bastante longa de debates e até de conflitos acadêmicos sobre esses conceitos. O termo folclore, mais antigo e mais presente no senso comum, forjado durante o período do romantismo, na passagem do século XVIII para o XIX europeu, carrega consigo toda uma carga de nostalgia e de lamentação contra as transformações do mundo moderno. É comum atribuir uma aura positiva ao universo da cultura rural, nordestina, sertaneja, em contraposição ao “lixo cultural” moderno. Até Mario de Andrade, que foi um dos maiores pensadores do Brasil de todos os tempos, recusava-se a ver no samba do Rio de Janeiro, no início do século XX, algo de valor, decidindo encaminhar suas pesquisas para o samba rural. Hoje, você se referir a Cartola, Pixinguinha ou João da Bahiana é o mesmo que apontar para os ícones de uma cultura consagrada nacionalmente. Na época de Mario de Andrade, isso era lixo. O mesmo fazemos, atualmente, em relação ao funk, ao rap e a outras expressões periféricas. O folclorismo, também, como movimento, tentou se legitimar academicamente, mas foi duramente combatido pelos seus métodos e teorias, sobretudo por Florestan Fernandes, não encontrando espaço nas universidades mais importantes. O conceito de cultura popular tampouco ajuda, pois confunde toda expressão cultural originária das camadas populares, negras, indígenas, periféricas, rurais, com o universo da comunicação de massa, com a produção cultural que se dá no âmbito da indústria cultural, que opera na lógica do espetáculo, do mercado, das celebridades e que nada tem a ver, em termos de valores e relações simbólicas, com esse campo em que estamos interessados. Por essa confusão entre cultura popular e cultura de massa eu recomendo que não se utilize esse conceito. Prefiro a expressão culturas populares e tradicionais. O plural aí ajuda a entender que não temos um único modelo. Temos uma diversidade linguística, só para citar um exemplo, fantástica. Cerca de 200 línguas indígenas, vários dialetos europeus como o pomerano e o talian, línguas ciganas e muito mais, além do português oficial. Então, são culturas.
Acesso – O Brasil é atualmente um país majoritariamente urbano, que espaços encontram e como se adaptam as culturas tradicionais nas cidades?
M. M. – Em todos os cantos pode-se perceber a tensão da disputa simbólica entre expressões culturais do povo e a administração urbana, voltada para a produção e o consumo. Veja a luta dos artistas de rua por uma legislação que permita sua atividade, a luta dos blocos de carnaval, dos pontos de venda de comidas tradicionais, como a luta das baianas de acarajé, que estavam sendo desalojadas pelos organizadores da Copa do Mundo. Tudo que o pessoal do rap fez a partir da ocupação da estação São Bento do Metrô em São Paulo. A luta dos terreiros de candomblé, umbanda, dos quilombos urbanos e até mesmo das aldeias indígenas, que foram engolidos pela cidade e tentam garantir seus territórios. A luta é muito desigual, muito injusta e muito violenta, mas é vivenciada todos os dias.
Acesso – Que aspectos compõem a preservação da cultura das comunidades tradicionais?
M. M. – Primeiro, eu não usaria preservação, porque a cultura é uma coisa tão dinâmica que, mesmo nos processos mais tradicionais e conservadores, encontra-se mudança contínua de formas de expressão. Prefiro pensar em proteção e promoção, como pregam as convenções da Diversidade Cultural e do Patrimônio Imaterial. Para isso, é preciso protegê-las dos ataques desiguais de que falamos anteriormente, deixá-las evoluir de acordo com sua própria lógica e ritmo. Um dos aspectos que as comunidades e os artistas, mestres e guardiões dos conhecimentos tradicionais enfrentam no dia-a-dia é a questão territorial. Observe o movimento indígena. Parece que a pauta deles é exclusivamente terra, mas quando eles dizem terra, estão dizendo território, lugar onde suas formas de organização, incluindo a cultura, tem chance de sobreviver e se desenvolver. A questão fundiária no Brasil é, sem dúvida, hoje, o maior problema para as culturas populares e tradicionais. As políticas sociais também são fundamentais porque, quase sempre, as condições de vida e de acesso desses grupos aos benefícios que a sociedade produz são muito restritas. Estamos vivendo apenas a primeira geração de pessoas que não passaram fome durante a infância, vendo os filhos dos mestres das culturas populares entrando na universidade, dentre muitos outros avanços. Isso tudo é perceptível nas festas populares. Dá pra ver claramente os efeitos positivos que a melhoria das condições de vida proporcionam para a expressão cultural popular e tradicional.
Acesso – Como você avalia o atual momento das políticas públicas para a área?
M. M. – Com o início da gestão de Ana de Hollanda no MinC houve um retrocesso profundo, uma mudança brutal de orientação e um desmonte das ações, programas e projetos que vinham sendo experimentados na gestão anterior. Mesmo que pouco estruturadas, sem o devido atendimento orçamentário, iniciativas como os prêmios Culturas Populares, Hip Hop, Culturas Indígenas, Ciganas, Microprojetos Culturais, Pontos de Cultura, Etnodoc, Revelando os Brasis, Promoart, Encontro de Saberes, Patrimônio Imaterial, entre muitas outras, foram fundamentais para introduzir o tema das culturas populares e tradicionais na pauta. Se não se sabe como resolver os dilemas, pelo menos temos agenda e compromisso dos gestores com a causa. Agora está se tentando retomar as mesmas bases anteriores e alguns movimentos começam a ser feitos na gestão de Marta Suplicy, como a retomada dos editais do Programa Cultura Viva. Tudo ainda, no entanto, num ritmo muito lento e profundamente afetado pela perda dramática de orçamento que o MonC tem assistido nos últimos anos. Voltamos a ter 0,1% do orçamento federal, quando chegamos a quase 1% na gestão de Lula. Talvez a inclusão das culturas populares e tradicionais só tenha sido possível naquele contexto de aumento orçamentário e, agora, lutar com os setores já consagrados é complicado. Ninguém abre mão do seu quinhãozinho. Marta reforçou as ações em prol das culturas afro-brasileiras e da Amazônia, mas errou na gestão dos editais. Focou fortemente no Vale Cultura que, do modo como está, não atende minimamente as culturas populares e tradicionais. Focou nos CEUs, que sairão em número menor, ao que parece. Nossa brecha ainda é o Cultura Viva, que se regenera aos poucos, depois do redesenho. Em paralelo a isso há uma pauta de projetos importantes no Congresso que poderiam melhorar o marco legal em torno do tema, como a Lei dos Mestres, a Lei do Artesão, a dos Capoeiras, a Lei Cultura Viva. Todas elas, infelizmente, tramitando muito lentamente porque não há uma intenção mais forte do MinC de fazer essa pauta andar. Marta teria força para isso, como demonstrou na aprovação da Lei do Sistema Nacional de Cultura e em outras ocasiões, mas não tem investido nisso.
Acesso – Como se deu a formação e como atua, hoje, o Fórum para as Culturas Populares e Tradicionais?
M. M. – O fórum começou como uma experiência de ação em rede, muito inovadora e desafiante, no início dos anos 2000. Foi a junção de pessoas interessantes em torno dessa causa, inicialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, que conseguiu contaminar outros estados e as gestões públicas. Por provocação nossa, o MinC realizou em 2005 e 2006 dois grandes seminários nacionais de políticas públicas para as culturas populares e, de lá para cá, muita coisa boa aconteceu do ponto de vista institucional. O Fórum de São Paulo propôs a nacionalização da rede inicial, hoje Rede das Culturas Populares e Tradicionais, que conta com cerca de 20 mil participantes. As reuniões do fórum são mensais e a rede, recentemente, realizou seu maior encontro, no mês de outubro passado, em parceria com o Sesc São Paulo e o MinC. Estamos já organizando o encontro de 2015, que terá sede em Pernambuco. Procuramos discutir e contribuir com a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas para as culturas populares e tradicionais.
Bernardo Vianna / Blog Acesso