Publicado originalmente no Blog Acesso no dia 27 de agosto de 2015.
Nesta entrevista, o ensaísta, ilustrador e documentarista Felipe Eugênio fala pelo Bando Editoral Favelofágico, formado a partir da proposta de construir um movimento literário de escritores das classes populares, no Rio de Janeiro. O grupo é também uma editora sem fins lucrativos, que publica autores que se identificam com uma perspectiva contra-hegemônica, e fomenta programas de promoção da escrita literária e ações de pesquisa sobre literatura e sociedade. O coletivo integra, junto com outros grupos culturais de Manguinhos, na capital fluminense, a Agenda Cultural Mandela Vive e vem desenvolvendo programas de residência literária intimamente conectados ao espaço urbano e seus territórios. Confira a seguir.
Blog Acesso – Em primeiro lugar, o que é “favelofagia”?
Felipe Eugênio – Temos na favelofagia uma proposta de criação artística na qual a assinatura é a do sujeito consciente de sua condição de classe e identidade étnica. No caso brasileiro, estamos falando de um escritor pobre, comumente não-branco, por vezes morador de favela e que, de modo livre, produz ficção. O olhar poético, diferente do que se naturalizou, não combina com alienação.
Blog Acesso – Quais são as propostas dos programas de residência literária que vocês estão desenvolvendo?
F. E. – Trabalhamos em duas residências literárias, com metodologias distintas. Na Roendo a Machadadas, disponibilizamos um ambiente para receber os autores, na favela de Vila Turismo, em Manguinhos. Dividimos esses encontros entre oficinas, que apresentam fragmentos de obras literárias que são referência do campo estético da favelofagia, e momentos para a escrita diária dos autores. Nas oficinas, normalmente, abordamos autores canônicos, mas com recorte condizente com a perspectiva crítica, como Lima Barreto, Castro Alves e Bernardo Guimarães, mas também Julio Cortázar, Charles Bukowski e Carolina Maria de Jesus. Nas segundas e sextas-feiras, há encontros com os editores que estão lendo as produções literárias feitas durante a residência. Nas sextas, também acontecem as perambulações pela cidade, uma tecnologia de investigação literária baseada na apreensão das experiências urbanas, algo entre a flanerie e o jogos cortazianos. Nesta residência, trabalhamos com escritores ainda inéditos, que sejam oriundos dos espaços populares da cidade, e todos os autores recebem bolsa.
Já a Residência Literária Ruminatória traz uma metodologia para autores já afinados com a estética favelofágica. A estrutura é composta de espaço para a produção de textos e, posteriormente, da troca entre os autores, que serão os editores de suas histórias. Os autores são livres criadores e, como tal, estão atentos a todo o cerceamento da liberdade, o que aponta o tom das obras resultantes das trocas nas residências.
Blog Acesso – Por que vocês consideraram necessário ter uma editora própria?
F. E. – Estamos formando não apenas uma editora própria, mas, sim, uma editora sem fins lucrativos. Isso se adapta ao nosso objetivo, que é possibilitar a produção e a difusão de uma literatura que vá na contramão daquela identificada pela pesquisa da Regina Dalcastagnè, que constatou que a maioria esmagadora dos autores publicados pelas grandes editoras são do sexo masculino, brancos e com alguma titulação acadêmica. Como tempero a mais, pensamos não apenas uma literatura feita pelas classes populares, mas uma literatura que nega a naturalização das desigualdades do mundo. Ao invés de ocuparmos o lugar de identificar autores que cabem nessa proposta, a editora, por meio das residências literárias, ajuda a forjar essa estética que chamamos de favelofágica. Não formamos autores, permitimos que eles, junto com o Bando Editorial Favelofágico, escrevam suas histórias sob uma proposta estética que é a mesma da linha editorial.
Blog Acesso – Por que é importante o aspecto de a editora não ter fins lucrativos?
F. E. – O fato de não ter fins lucrativos nos liberta de pensar na venda dos livros para sustentação: produzir autores e fazer os livros chegarem às pessoas é o nosso foco. Deste modo, não disputamos o mercado de vendas de livros. Na ausência da ideia de lucrar, investimos em buscar uma literatura que apresenta qualidades que raramente vemos nas livrarias: histórias enegrecidas, histórias suburbanas, histórias transgênero, histórias do trabalhador braçal e do intelectual que mora na favela.
Blog Acesso – Que pesquisas vocês estão desenvolvendo e qual a proposta do seminário Literatura no Dente?
F. E. – Chamamos de investigações literárias uma série de atividades em que nos esforçamos para ampliar a compreensão sobre a presença da literatura na contemporaneidade. O seminário foi um desses esforços. Chama-se Literatura no Dente porque nossa proposta é antropofagizar a literatura contemporânea através de uma perspectiva de classe, gênero e identidade étnica. Mordemos a literatura brasileira, trazendo de seu cânone literário aquelas obras que alcançam essa dimensão crítica que nos interessa. Não inventamos roda alguma. Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Vianninha, Augusto Boal, Guarnieri, o próprio Machado de Assis, Érico Veríssimo, entre outros, além de contemporâneos como Nei Lopes, Ferréz, Conceição Evaristo e Luiz Ruffato, são exemplos que ofertam caminhos para refletir sobre a literatura que enfrenta, no lugar daquela que omite ou obedece. No Literatura no Dente, tivemos um debate de abertura sobre o papel da literatura na crítica ao capitalismo, com o Luiz Ruffato e o Geraldo Andrade, dramaturgo de Manguinhos, e, ao longo da semana, na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], trouxemos militantes, acadêmicos, escritores, moradores de favela para debater sobre livros como Eles eram muitos cavalos, do Ruffato, Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus, Os Bruzundangas, do Lima Barreto, e o Manifesto Favelofágico, que foi nossa primeira tentativa de organizar as ideias e lançá-las ao mundo.
Blog Acesso – Por que a literatura e a ficção são importantes para mudar a realidade?
F. E. – A realidade não está de modo algum afastada da ficção que consumimos. As histórias oriundas do cinema, do teatro, da literatura, e, mais forte ainda, do cinema que chega à televisão ou da própria teledramaturgia, constituem boa parte de nossos valores. A literatura contemporânea, salvo boas exceções, no máximo arranha a realidade. Nos interessa a literatura que se sente incomodada com o mundo. Ela muda o mundo? Não diretamente, é claro. Mas se modificarmos o mundo literário, já estaremos satisfeitos. Apenas queremos deixar claro que o universo literário pode e deve ser disputado. A favelofagia não traz a favela para a literatura, ela expõe que os reis têm andado nus por aí. Mas esse conceito-nome [favelofagia] nos denuncia. E aí, parafraseando o Augusto Boal, nada de ser equidistantes, nós tomamos partido.
Bernardo Vianna / Blog Acesso
Foto: Divulgação / Bando Editoral Favelofágico