Publicado originalmente no Blog Acesso no dia 22 de outubro de 2015.
Professora do programa de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie, em São Paulo, a filósofa Marcia Tiburi é também colunista da Revista Cult e autora de romances e de livros de filosofia. Mais recentemente, tornou-se uma das criadoras da #partidA, um movimento horizontal que pretende tornar-se o primeiro partido feminista do Brasil.
De acordo com a filósofa, o movimento “pensa numa politização da estética que reconhece o caráter também artístico da própria produção política”. Para compreender essa colocação, conversamos com Tiburi sobre o espaço da mulher na cultura, sua representação e a analogia entre criação artística e criação política. Confira a seguir.
Blog Acesso – Historicamente, o reconhecimento da mulher como artista é ainda muito recente. A cultura, hoje, ainda é um meio machista?
Marcia Tiburi – A nossa sociedade não reconheceu as mulheres como artistas em âmbito nenhum. Os historiadores franceses Michelle Perrot e Georges Duby falam que a história das mulheres é uma história de esquecimento, pois não foi feita pelas mulheres e não foi feita para contar a história das mulheres. Na história, as mulheres são um dado apagado. No mundo contemporâneo, o reconhecimento já acontece, mas é raro. E isso em qualquer área. Podemos pensar em Frida Kahlo, para pegar um exemplo do mundo das artes. Ela é uma artista que foi reconhecida sobretudo a partir do lugar que ela ocupou. Ela teve uma obra muito forte, muito expressiva, mas ela também tinha um nexo com um determinado contexto que permitiu a ela o reconhecimento. Claro, eu não acho que a gente deva compará-la aos homens de sua época porque isso seria cair na armadilha que o próprio reconhecimento, no âmbito do patriarcado, coloca para as mulheres. Mas, quando você estuda a história da arte, você vê a Frida Kahlo no século 20 e, observando os séculos anteriores, é muito raro encontrar alguma artista mulher. E é muito raro você encontrar uma mulher com a expressão que Frida Kahlo encontrou.
Blog Acesso – E quanto a esse reconhecimento, ele por vezes não acaba por se dar de forma estereotipada?
M. T. – No que diz respeito à forma, podemos pensar se o reconhecimento em relação às mulheres é diferente do reconhecimento que se dá aos homens. Um exemplo que explica isso é a Simone de Beauvoir. Uma mulher que falou sobre o caráter essencial e primeiro dos homens na cultura e o caráter inessencial, ou secundário, das mulheres. Os homens, segundo ela, estão situados em um lugar de protagonismo, que funciona como um privilégio, e, para as mulheres, o reconhecimento é uma conquista. A Simone de Beauvoir é uma grande filósofa, com uma obra importantíssima também na literatura, mas, quando se fala dela, imediatamente nos referimos a Jean-Paul Sartre, como se não fosse possível falar dela sem citar Sartre – como, aliás, estou fazendo agora. Na vida das mulheres de hoje há um certo grau de autonomia, mas há também, na nossa cultura, uma múltipla escravização da figura das mulheres, relacionada a questões de trabalho, evidentemente, mas também à estética, de um modo intimamente ligado ao capitalismo. Se vamos continuar em um processo político que renove o sentido do reconhecimento das mulheres como sujeitos, teríamos também de aprender a desconstruir essa escravização que é estética.
Blog Acesso – Como se dá essa escravização estética na cultura de massa?
M. T. – A configuração das mulheres como mercadorias no contexto de o que você chamou “cultura de massa”, mas que a gente também pode transpor para o conceito de indústria cultural, tem relação direta com a construção da mulher mercadoria. Por exemplo, quando a mulher trabalhadora do mundo fashion precisa imitar a figura paradigmática da modelo, muito magra, com o cabelo dessa ou daquela forma – falo, hoje, da modelo, mas, algumas décadas atrás, poderíamos estar falando sobre a estrela de cinema. Essa questão diz respeito à representação dessas mulheres nesse cenário, que precisa ser compreendida a partir do contexto da sociedade do espetáculo. Os três âmbitos, cultura de massa, indústria cultural e sociedade do espetáculo estão conectados e a mulher advém daí como uma mercadoria, ela é representada como um objeto para o deleite, um objeto agradável. Seja no mundo fashion, seja na pornografia, a mulher é um objeto que pode ser útil, que pode ser manipulado e que serve para agradar. É difícil encontrar na história da cultura a representação de uma mulher que não seja feita para agradar. Quando encontramos um exemplo de mulher desagradável, essa mulher está sempre sendo criticada, vilipendiada, aviltada e se usa como exemplo justamente para dizer “você não deve ser assim”. Existe esse imperativo na construção dos discursos. A mulher é representada de uma determinada maneira no cinema, na literatura ou na publicidade e essa representação tem valor de lei, de regra que deve ser obedecida por todas as outras mulheres. Por outro lado, vivemos uma crise de representação em todos os níveis e também as mulheres já não se sentem representadas. Existe um ativismo que trabalha em cima de aspectos estéticos, então já existem mulheres que se autoafirmam como gordas, por exemplo, e que estão insatisfeitas com a predeterminação de um padrão.
Blog Acesso – Estamos em um estágio em que se começa a vislumbrar uma oportunidade de ruptura?
M. T. – Estamos em uma fase em que há uma crise em relação às predeterminações estéticas e, se essas predeterminações são questionadas, a gente já põe o pé na esfera da política. Essa atitude de revolta e de crítica, de criação de outros espaços mais autocriativos, já indica que estamos em outro contexto político. Estamos vivendo justamente esse momento tenso de superação de paradigmas antigos. E há um aspecto fundamental da nossa época que é a valorização das singularidades. As pessoas descobriram as suas singularidades, o seu caráter único, e se entregaram a isso. O padrão gerado pelo eurocentrismo, pelo patriarcado e pelo capitalismo vem sendo desconstruído e criticado e outras subjetividades e representações têm ocupado seu lugar.
Blog Acesso – Como você vê políticas culturais como os editais para produções de mulheres ou mostras somente para artistas mulheres? São ações capazes de gerar empoderamento?
M. T. – Eu sou a favor das políticas relativas a cotas. As cotas são um mecanismo importante de “correção histórica” e de projeção de uma outra sociedade. Não é possível a gente esperar que a democracia vá se construir “naturalmente”. Se as mulheres não encontram espaço, se as populações oprimidas não encontram espaço, é preciso criar espaços para essas pessoas se desejamos uma sociedade democrática, com asseguramento dos direitos fundamentais para todas as pessoas. E o direito de expressão artística é também um direito fundamental. Nesse sentido, sou absolutamente a favor de políticas culturais para mulheres e para aqueles que estão excluídos dos processos em função das suas construções de identidade.
Blog Acesso – Como a #partidA dialoga com a questão da mulher na cultura?
M. T. – Entendemos cultura como política. Necessariamente, ao produzir cultura, produzimos política. Quando a gente pensa a mulher na cultura, a gente pensa a mulher na cultura política, a mulher na cultura artística, também na cultura científica, as mulheres em relação ao poder de um modo geral, na medida em que o poder se estabelece nos diversos campos da atuação humana, ou seja, no campo geral da cultura. Na #partidA há muitas mulheres que atuam diretamente no âmbito da produção artística, compreendendo que a criação artística é análoga à criação política. Temos pensado muito em criação artística como criação política e criação política como criação artística. Esse trânsito entre as artes e a política é parte da nossa perspectiva e pensamos numa politização da estética que reconhece o caráter também artístico da própria produção política.
Bernardo Vianna / Blog Acesso
Foto: Reprodução / TV Brasil