Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural em 22 de maio de 2014.
O Brasil, ao longo dos últimos anos, tem protagonizado, como organizador ou como país homenageado, diversos eventos culturais internacionais, oportunidades para a difusão da complexidade e da riqueza cultural do país. Do início de 2013 para cá podemos citar, entre outros, a Feira do Livro de Frankfurt, o Mês do Brasil na China, o Ano do Brasil em Portugal, o Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá e a Feira do Livro de Bolonha, onde o ilustrador brasileiro Roger Mello recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen, tido como o Nobel da literatura infanto-juvenil.
“São realmente inúmeros convites que surgem, o que amplia muito a nossa exposição e beneficia muito a nossa difusão cultural. Agora, em setembro, o Brasil será homenageado na Feira do Livro de Gotemburgo, que é muito importante na Europa do Norte”, conta André Maciel, chefe da Divisão de Operações de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores.
Segundo o diplomata, o interesse internacional pela cultura brasileira cresceu muito ao longo da última década, abrindo novos mercados para a indústria cultural brasileira. “O fato dele [Roger Mello] ter ganhado esse prêmio [o Hans Christian Andersen] abriu um grande mercado para ilustradores brasileiros, uma área em que o Brasil é muito rico, diverso e forte, mas que ainda não é de grande conhecimento do mundo. Esses grandes eventos tem ajudado muito a projetar nossa imagem e a abrir mercados para a indústria criativa brasileira”, avalia Maciel.
Yolanda Smits, autora do relatório sobre o Brasil para o Preparatory Action on Culture in the EU’s External Relations, iniciativa da União Europeia para o fomento da cooperação internacional no campo da cultura, aponta fatores que explicam o crescimento do interesse do bloco europeu pelo Brasil. Entre eles, a emergência como um dos países do BRICS e sétima economia do mundo, o aumento da produção e do consumo internos de bens e produtos culturais e a organização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, o que, segundo a especialista, demanda que o governo brasileiro defina marca e imagem internacionais do país.
“O interesse mundial crescente pelo Brasil aplica-se também ao campo da cultura e aos atores culturais do país. Tanto atores governamentais como não governamentais são cada vez mais procurados para participar de eventos e projetos em outros países”, afirma Smits ao apontar que, fora do país, muitas pessoas começaram a consumir produtos culturais brasileiros. “Mesmo no deserto marroquino as crianças cantavam a música ‘Ai se eu te pego’, do Michel Teló”, diz a especialista.
Brasil e União Europeia, de acordo com Smits, têm características comuns que podem favorecer o desenvolvimento de relações culturais mais profundas e a construção de projetos cooperativos inovadores. Para a especialista, o bloco europeu não deve deixar passar a oportunidade de desenvolver relações culturais com o Brasil e aproveitar o crescimento econômico brasileiro em tempos de austeridade na Europa. “Relações culturais mais próximas com o Brasil trariam vantagens econômicas e políticas para a União Europeia e poderiam fomentar sua própria busca por identidade”, avalia.
Entre os fatores que ajudariam a fortalecer o papel da cultura nas relações entre Brasil e União Europeia, Smits menciona a cooperação entre universidades em assuntos como política e gestão culturais, preservação do patrimônio e planejamento urbano. Inventariar os agentes culturais interessados em cooperar e investir no mercado cultural um do outro, além de promover o incremento da cooperação entre as indústrias criativas, são também ações destacadas pela especialista. Entre os desafios para a cooperação, Smits cita a ideia ultrapassada e cheia de clichês que a Europa tem do Brasil. “A maioria dos europeus não está ciente do recente desenvolvimento do Brasil e seria de grande valor se a União Europeia encorajasse uma imagem atualizada do Brasil na Europa para facilitar a cooperação e a comunicação intercultural em diferentes níveis da sociedade”, afirma.
Economia criativa
Para Smits, destravar o potencial das indústrias criativas traz grande oportunidade para a futura cooperação. “Essas indústrias terão um papel chave ao se determinar o conteúdo da marca ‘Brasil’. Editoras, livrarias e museus são setores promissores e a cooperação em setores como música, artes cênicas e arquitetura também poderia ser aprofundada”, calcula.
Segundo André Maciel, o setor da economia criativa é fundamental para as relações internacionais brasileiras e tem sido apoiado pelo Itamaraty. Como exemplo, Maciel cita o primeiro encontro do Mercado das Indústrias Criativas da América do Sul – MicSul, do qual artistas, produtores e empreendedores brasileiros participaram apoiados por parceria entre os ministérios da Cultura e das Relações Exteriores.
“A diplomacia cultural passa a ser muito importante para encontrar e ajudar a fomentar mercados para a nossa indústria criativa. Por outro lado, a indústria criativa é muito importante para a diplomacia como um todo porque permite que a gente construa pontes com outros países. É uma relação dupla, a diplomacia abre caminhos para a indústria criativa, mas essa indústria é também um elemento importante para o exercício da atividade diplomática porque permite construir pontes com os países com os quais temos relações”, explica o diplomata.
Poder brando brasileiro
De acordo com a professora Alexandra de Mello e Silva, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, o conceito de soft power surge em oposição ao hard power, que se refere às capacidades materiais, particularmente militares, de um país. “[O soft power] diz respeito à capacidade de um Estado de projetar seu poder e influência no cenário internacional por meios outros que não a coerção e o uso da força. Ele pode envolver recursos de natureza econômica, político-diplomática e cultural”, explica.
A cultura, de acordo com Silva, é um elemento central do soft power, ou poder brando, ou suave, dependendo da tradução, uma vez que ajuda “a difundir e projetar os valores, crenças, modos de vida e ideias associados a um Estado ou comunidade de Estados, universalizando-os”. Esse papel da cultura poderá ser fortalecido, ainda segundo a professora, por meio de diplomacia cultural ativa, planejada e executada a partir do Estado, mas também de forma mais difusa e descentralizada, por meio da mídia, das redes sociais e da indústria cultural em geral. “Como exemplo, basta pensar em Hollywood e em como ela influenciou não apenas o nosso modo de ver os EUA e o mundo em geral, mas a própria experiência cinematográfica em si, em termos estéticos e narrativos”, observa.
Segundo André Maciel, o Departamento Cultural é o maior do Itamaraty em número de divisões e, portanto, é bastante especializado. São seis áreas dedicadas à promoção da Língua Portuguesa, cujo aprendizado tem crescente procura em outros países; à divulgação de informações sobre o Brasil; à difusão cultural e promoção da literatura, da música, das artes visuais, do teatro, da gastronomia, do design, entre outros; às relações culturais multilaterais, como a participação brasileira na Unesco, órgão das Nações Unidas dedicado a educação, ciência e cultura; à cooperação educacional, que tem crescido em especial por meio do Ciência sem Fronteiras; e uma área específica dedicada à promoção do audiovisual brasileiro, tanto cinema como TV. Além disso, existe a rede de Centros Culturais Brasileiros, presentes em 24 países, cujas principais atividades estão relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, como a aplicação de provas para a obtenção do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros – Celpe-Bras.
Às vésperas da Copa do Mundo, no entanto, Silva considera que o encanto internacional com o Brasil possa estar se quebrando. “O foco da mídia internacional se voltou para as deficiências estruturais que o país já tinha e não resolveu: problemas graves de mobilidade e infraestrutura, obras atrasadas ou inacabadas com orçamentos muito acima dos custos iniciais, violência urbana, baixa qualidade dos serviços públicos, protestos e demandas sociais represadas”, avalia.
Também preocupa a professora o reforço de velhos estereótipos em torno do conjunto “samba, carnaval, alegria, futebol, mulheres bonitas”. “Talvez haja uma lição positiva a se tirar disso, que é o fato de que, se o Brasil quer se apresentar como potência emergente no cenário internacional, inclusive em termos culturais, é preciso mais do que um esforço de marketing para atrair e sediar grandes eventos”, conclui.
Bernardo Vianna / Blog Acesso