Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural, em duas partes, nos dias 10 e 13 de março de 2014.
Pesquisador da Universidade de Miami, George Yúdice é o autor de A Conveniência da Cultura, obra que, atualmente, tornou-se uma das principais referências para o estudo da cultura e de sua economia. Dedicado ao estudo das indústrias criativas, Yúdice estará, em maio, em Salvador, quando participará do III Seminário Políticas para Diversidade Cultural, durante o qual ministrará a conferência de encerramento “Usos da cultura na era global“. Em entrevista ao Acesso, o pesquisador falou sobre mercado, bem público e diversidade cultural.
Acesso – Você vê na arte e na cultura potencial para estimular o crescimento econômico e melhorar as condições sociais?
George Yúdice – Para ser honesto, eu sou cético quanto à capacidade da arte em si de gerar crescimento econômico. A meu ver, a prática da arte em si não é o que gera lucro; o que o gera é a arte produzida, promovida, distribuída e mercadejada. Na atualidade, virou premissa da política cultural acreditar que é possível desenvolver e administrar sistemas de gestão da arte e da cultura que consigam crescimento econômico e bem-estar social. Poder-se-ia pensar numa dialética entre a mercantilização e o bem público. No primeiro processo, se reorienta o valor da cultura de acordo com os princípios e a lógica do mercado, assumindo a condição de serviço comercial. No segundo, trata-se de gerir a cultura de maneira que fortaleça os valores e práticas das comunidades. Mas existe realmente uma linha divisória talhante entre as duas abordagens? Um serviço comercial pode satisfazer as necessidades do bem público? Não é isso o que acontece com os serviços de TV a cabo ou da Internet? São serviços comerciais que abastecem os interesses de entretenimento e comunicação da cidadania. Mas realmente abastecem esses interesses? É verdade que milhões de pessoas veem e querem ver novelas da Globo e se comunicar através do Facebook, mas desde o ponto de vista da economia política do desejo. A cultura mercantilizada promove gostos que levam a consumir ainda mais certo tipo de cultura, que, aliás, difunde valores consumistas, se não no conteúdo da narrativa, certamente na publicidade que a acompanha e até se insere no argumento das comunicações. Mas também é verdade que os telespectadores não são simples robôs que são modelados pelos programas. Segundo a teoria da resistência, criatividade e empoderamento do consumidor, o consumo pode ser um ato de subversão às forças que encarrilham o comportamento (veja-se o livro Textual Poachers do Henry Jenkins, onde ele propõe que os fãs transformam os conteúdos que admiram em uma cultura própria). Entre essas perspectivas, achamos a teoria da negociação contextualizada entre conduções estruturais e a agência dos consumidores, de maneira que o consumo cultural não é nem determinação inexorável nem empenho voluntarista (veja-se o livro Consumidores e Cidadãos do Néstor García Canclini).
Acesso – E quanto à gestão desses processos?
G. Y. – O dito acima se relaciona com a cultura gerida pelo mercado e a maneira como os consumidores se relacionam com essa cultura: acomodam-se, resistem, se apropriam dela. Mas também é importante a cultura gerida pelo Estado e o terceiro setor. As comunidades têm seus próprios gestores “orgânicos”, como, por exemplo, os terreiros de candomblé no Brasil ou as festas patronais na América Central. A ideia de que a cultura existe sem gestão nenhuma é incorreta. O problema é o alcance das culturas comunitárias perante o domínio da indústria cultural hegemônica. Quando pensamos no valor social da cultura comunitária, nos referimos aos valores e discursos que gerem os moradores e os aprovisionam de materiais para pensar a vida em comum.
Acesso – Que experiências você daria como exemplo dessa gestão?
G. Y. – Exemplo que aproveitei muito foram as visitas ao Sarau da Cooperifa na periferia de São Paulo. Esse tipo de atividade não se registra nos estudos de consumo cultural. Essas pesquisas processam os dados para a audiência de shows de música popular, carnaval de rua ou no sambódromo, ensaios de escola de samba, espetáculos, livrarias, eventos literários. Mas poderia complementar-se essa informação com entrevistas que indaguem mais profundamente na complexidade do que exatamente se consome em atividades participativas como as rodas de samba e os saraus, que ademais expressam uma “comunitariedade” que não se limita aos moradores imediatos da área.
Essa diversidade de oferta e consumo também é confirmada por Écio de Salles, diretor da FLUPP, ex-diretor de comunicação do Grupo Cultural Afroreggae e ex-secretário da Cultura de Nova Iguaçu. Num ensaio em que elabora a ideia da “articulação comunitária”, Salles explica que o sucesso do Afroreggae e outras iniciativas culturais na periferia é a articulação “de práticas e saberes já presentes de algum modo no cotidiano da comunidade” com outros trazidos por líderes de oficinas e oportunidades, como é o caso da FLUPP ou da Universidade das Quebradas, que justapõe e misturam saberes de diversas origens. Salles observa a capacidade que tem o consumo cultural de transformar subjetividades: “Nessas organizações, a música, a dança, o teatro, o circo e a capoeira, entre outras, além de formas estéticas, são também linguagens que promovem certo diálogo, aquele capaz de produzir subjetividade – reescrever trajetórias de vida, modificar pessoas e comunidades, repensar a vida e transformá-la”.
Essas iniciativas são exemplos de cultura viva, na qual se rompem os cânones artísticos e o valor se coloca na criatividade sem hierarquias. Nos melhores casos, não se precisa diferenciar entre “arte em si” e “cultura comunitária.” A criatividade acha-se em todo lugar. Em 2010, a Escola Livre de Cinema foi designada Ponto de Cultura, programa criado em 2005 pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil a fim de fortalecer as práticas culturais existentes em várias comunidades no Brasil. As práticas apoiadas pelo programa variam desde as belas artes até as culturas vernáculas mais tradicionais. A ideia era não só de reconhecer a diversidade de práticas culturais, mas articulá-las em rede para o conhecimento mútuo da enorme diversidade de brasileiros.
Esta longa resposta pode-se resumir da seguinte maneira: Estimular crescimento econômico pode provir da gestão da arte e da cultura. Um pintor, um escritor, um dançarino, geram lucro inseridos na gestão da produção, marketing, branding, distribuição. A situação é semelhante para a contribuição social da arte e cultura: depende em grande parte da gestão. As iniciativas mencionadas têm gestores: Heloísa Buarque de Hollanda, Sérgio Vaz, Faustino, Écio de Salles, Gil e muitos mais. Que a arte e a cultura sejam gerenciadas para gerar economia e benefício social não as diminui. Se há diminuição isso se deve à qualidade e aos objetivos da gestão.
Acesso – Quais os perigos de se considerar a cultura meramente como recurso instrumental para o crescimento econômico?
G. Y. – Desde o século 18, a partir do Kant, há uma tradição de valorizar a dimensão crítica da arte; para os teóricos Horkheimer e Adorno, essa criticidade perde-se com a indústria cultural, voltada à popularidade que se traduz em lucro. Mas o Jenkins também tem razão: o consumidor ou o fã não é um robô que decodifica os protocolos programados nas obras. Como explica García Canclini, os consumidores se apropriam e transformam. Além disso, certas novas mídias, entre elas os videogames e as redes sociais, têm outros valores que são pouco desenvolvidos nas belas artes – por exemplo, a interação –, mas não necessariamente em certas práticas artísticas comunitárias como a roda de samba e a chamada e resposta característica das artes africanas.
Acaso o maior perigo de considerar a cultura “meramente como recurso instrumental para o crescimento econômico” seria o desenho de políticas culturais que protagonizem essas expressões e atividades que geram lucro, como grandes equipamentos – museus, estádios, parques temáticos, etc. – que devem atrair grandes públicos e turismo. Um grande perigo são os projetos de revitalização urbana nos quais a construção de novos museus, amiúde por starquitetos, promete melhorar e estetizar o tecido urbano, fortalecer a economia, e criar empregos. Em alguns casos até prometem fomentar a integração social, sobretudo dos moradores das áreas onde se instalam os museus, em geral zonas urbanas degradadas, mas onde, em quase todos os casos, acabam produzindo gentrificação.
Acesso – Muito se tem falado em políticas de fomento à economia criativa como modelo de crescimento sustentável.
G. Y. – Outra tendência são as políticas culturais voltadas às chamadas indústrias criativas, que têm sua origem na criatividade e cujo valor se mede na rentabilidade dos direitos de propriedade intelectual que se vendem ou licenciam no mercado, cada vez mais um mercado de exportação de bens e serviços voltados ao crescimento econômico. Se, por um lado, o relatório A Economia Criativa, da UNCTAD, de 2008, elogia a geração de renda e emprego, a inclusão social, a interação com tecnologia, propriedade intelectual e objetivos turísticos e o fortalecimento do valor agregado do conhecimento que na atualidade é a dimensão mais importante de desenvolvimento, por outro lado o relatório reconhece as contradições e limitações do que expõe. Por exemplo, o relatório inclui um resumo do estudo de Paulo Miguez sobre o carnaval da Bahia mostrando grandes montantes produzidos pela festa, mas também indicando a enorme desigualdade e exclusão social na distribuição dos recursos gerados pelo carnaval baiano.
Mas existem contra-exemplos que mostram que deve haver um equilíbrio entre a geração de renda e emprego, por um lado, e bem-estar social, por outro. Esse é o caso de Peekskill, uma pequena cidade a cerca de uma hora de Nova York, que procurou criar emprego no setor cultural, mas também integrar as minorias raciais no projeto. Com a desindustrialização dos anos 1960 e 1970, as populações minoritárias, afro-americanos e porto-riquenhos que se estabeleceram lá para trabalhar na indústria têxtil, perderam seus empregos e muitos caíram na pobreza, na delinquência e no uso de drogas. Com a gentrificação de Soho, Chelsea e outros bairros nova-iorquinos onde os artistas tinham liderado a transformação urbana, o êxodo de artistas começou. Uma coalizão de vários grupos setoriais – privado, terceiro setor e público – elaborou um plano não só para atrair os artistas, mas também para criar empregos e integrar a minoria empobrecida nesta nova iniciativa. Para atrair artistas, uma empresa mista público-privada reformou as velhas fábricas e lofts, ofereceu-os a 20% do custo em Nova York e garantiram empréstimos de até 80% do preço. Além dos lofts, o projeto de renovação urbana criou um grande museu e outros espaços alugados para galerias e outros setores de atividades relacionados com a arte. E para conseguir um efeito multiplicador sobre o emprego, a parceria governo e banco ofereceu empréstimos e créditos para as empresas que vendem materiais de arte e serviços oferecidos. A integração dos mais pobres nesta nova economia da cultura foi conseguida através da oferta de incentivos especiais para as minorias que abriram negócios relacionados às artes. E, finalmente, a coalizão buscou impulsionar o turismo, estabelecendo uma rota artística de Nova York com a venda de pacotes para visitar galerias e museus em cidades vizinhas. Trata-se de um plano não só econômico, mas também social e cultural abrangente e sustentável. Esse e alguns outros projetos bem sucedidos – por exemplo, o Festival de Jazz e Blues de Guaramiranga – confirmam o ponto que enfatizei anteriormente: o equilíbrio entre o fator econômico e o social, entre os valores mercadológicos e os estéticos, requer uma boa gestão. O que não quer dizer impor, mas sim oferecer oportunidades como as acima mencionadas para alentar o bem comum.
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segunda parte
Acesso – Em que medida podemos pensar a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais como estratégia para resguardar a diversidade cultural de um modelo de crescimento que depende de uma economia de escala?
George Yúdice – A Convenção oferece um marco abrangente, com validade jurídica internacional, que encoraja e orienta as nações na legislação de políticas públicas para proteger e promover a diversidade de expressões culturais. Os stakeholders de cada país devem negociar com os poderes públicos as políticas e medidas mais efetivas para garantir a sustentabilidade não só da diversidade cultural como também do que poderíamos chamar de ecossistema social e cultural.
A necessidade de propor um ecossistema cultural ficou evidente a partir da década de 1980, por dois motivos. Primeiro, devido à resistência de países como França e Canadá, nas negociações da Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT [instância de fomento ao livre comércio internacional antecessora da Organização Mundial do Comércio –OMC] e nos acordos de livre comércio, à ideia de que a cultura consiste em bens e serviços como quaisquer outros, que podem ser comercializados sem efeitos colaterais na qualidade da vida. Como no análogo meio ambiental, os recursos não são somente para a exploração econômica, também portam valores que se pervertem quando só impera a lógica comercial. Em segundo lugar, o reconhecimento pelas agências dedicadas ao desenvolvimento, como Banco Mundial e BID, de que a cultura serve para o desenvolvimento – o que requer cautela com seu uso instrumental. Já é lugar comum dizer que cultura cria empregos e promove coesão social. Mas a instrumentalização da cultura como recurso econômico ou social requer reflexão sobre o que fica em risco.
Acesso – Na prática, quais são os riscos desse processo? E como a Convenção atua, no sentido de mitigar esses riscos?
G. Y. – Por exemplo, o turismo cultural pode gerar renda para comunidades pobres, mas o desenvolvimento sustentável dessas comunidades tem que ser medido em termos do controle que elas têm sobre seus valores, práticas culturais, identidades, e não só nos termos de sustentabilidade econômica.
A Convenção é uma estratégia para corrigir esses problemas, mas tem que escapar da retórica típica das convenções intergovernamentais rumo à especificidade das políticas e estratégias concretas. A grande diferença em relação às políticas de proteção da era do GATT é que a diversidade cultural que promove a Convenção se concebe como uma ecologia global a partir do serviço público, contemplando a discriminação positiva para os países em desenvolvimento e as minorias e grupos indígenas internos às nações; o fomento de parcerias entre os setores público, privado e terceiro; o apoio especial às médias, pequenas e micro empresas, que são o sine qua non da diversidade; e até o setor informal, que é o mais amplo em certas áreas da produção e circulação de bens e serviços culturais.
Acesso – Existe, portanto, tensão entre o que se entende como bem público cultural e a atividade cultural que gera propriedade intelectual?
G. Y. – Existe, sim. Como escreve Ana Carla Fonseca Reis, “de pouco adianta estimular o crescimento de setores geradores de montantes siderais de direitos de propriedade intelectual, se a criação dessa riqueza produzida não for acompanhada de uma melhor distribuição de renda, propiciada pela inclusão socioeconômica”. As leis atuais de propriedade intelectual estão totalmente fora de lugar no entorno digital, por exemplo. A digitalização de qualquer texto, imagem e som, e sua transmissão na internet aumentou o volume do comércio internacional das indústrias culturais a tal ponto que, agora, ocupam um dos lugares mais destacados, juntamente com outras indústrias de propriedade intelectual (patentes, marcas, etc.). Essa mudança tem desencadeado um processo acelerado de proprietarização de tudo o que é digitalizável, incluindo o patrimônio cultural de inúmeros grupos, em grande parte indefesos, na busca desenfreada de conteúdos pelas empresas. O mesmo processo ocorre na colonização da vida cotidiana de milhões de usuários, que participam de redes sociais cujas atividades se tornam propriedade rentável. Trata-se da erosão do bem público.
Acesso – Como se relacionam as ideias de sustentabilidade cultural e ambiental?
G. Y. – A partir da década de 1970 foram operacionalizadas medidas para frear a degradação do meio ambiente, que as iniciativas de desenvolvimento urbano, agrícola e infraestrutural ocasionaram aos recursos necessários para a vida. A constatação da deterioração demonstrou que existe uma imbricação recíproca entre meio ambiente e economia. No longo prazo, uma economia saudável, que tenha recursos para operar, precisa de um meio ambiente saudável ou sustentável. Em um mundo no qual os líderes consideram a economia como o setor mais importante, a deterioração ambiental, entendida como ameaça à economia global, teve que ser abordada como questão fundamental nas políticas de desenvolvimento.
Acesso – Podemos associar o mesmo processo ao campo cultural?
G. Y. – Como explica David Throsby, pode-se estabelecer uma analogia entre capital natural e capital cultural. O capital natural provém do legado dos processos criativos da natureza, dos recursos renováveis e não renováveis, os ecossistemas que os mantêm e a biodiversidade. O objetivo da ecologia é a manutenção desses recursos. De forma semelhante, o capital cultural provém do legado dos processos criativos das ações humanas. A ecologia cultural tem o objetivo de garantir a manutenção dos recursos culturais, que podem ser renováveis (por exemplo, gêneros musicais) ou não renováveis (uma obra de arte). Vale a pena sublinhar que a cultura, como a natureza, também pode ter perdas. No século 20, deixaram de existir quatro mil línguas – quase nenhuma delas estava escrita ou gravada, o que permitiria sua recuperação. Igualmente, uma vez extinto o último mestre de ofício não há como recuperá-lo. Em alguns casos, tanto a natureza quanto a cultura sofrem o mesmo processo de perda. O desaparecimento de uma espécie de árvore, devido à devastação da floresta, elimina tanto o material com o qual se fazem as máscaras rituais quanto o ambiente no qual vive uma tribo indígena. Em comunidades tradicionais, existe um equilíbrio nas interações para manter o fluxo de recursos naturais. Com a modernização e a industrialização, sobretudo em contextos liberais, prima o valor de mercado, com o consequente esgotamento ou deterioração dos recursos naturais.
O que se faz evidente é que, na modernidade, certos instrumentos que fizeram possível o desenvolvimento econômico das indústrias culturais inviabilizaram muitas das expressões culturais e, em alguns casos, as asfixiaram devido à impossibilidade de competir. O problema não é o mercado em si, mas certos tipos de mercado, que visam só o grande lucro.
Bernardo Vianna / Blog Acesso