Publicado originalmente no Blog Educação no dia 2 de setembro de 2015.
Os Planos Municipais e Estaduais de Educação são documentos que orientarão o Executivo das respectivas esferas de governo no planejamento da educação ao longo da próxima década. No último dia 25 de agosto, os vereadores da cidade de São Paulo aprovaram o texto substitutivo do PME paulistano, produzido pela Comissão de Finanças e Orçamento, retirando os termos “diversidade sexual” e “igualdade de gênero”, contidos em estratégias de enfrentamento à discriminação nas escolas que faziam parte do texto original.
Além de São Paulo, em cidades como Goiânia, Manaus, Porto Alegre e Brasília as temáticas de gênero e orientação sexual também foram deixadas de fora dos Planos Municipais de Educação. Em relação aos Planos Estaduais, dos 13 estados que já aprovaram o documento oito omitiram as discussões de gênero e orientação sexual. O mesmo tipo de pressão já havia se dado durante a aprovação do Plano Nacional de Educação – PNE, sancionado, em 2014, sem mencionar nenhuma vez a palavra gênero no texto da lei que o instituiu, a Lei 13.005 de 2014.
Para as bancadas religiosas nas diversas casas do Legislativo, principais opositoras da inclusão da discussão sobre gênero e orientação sexual nos Planos de Educação, a temática levaria para a escola uma suposta “ideologia de gênero” que, de acordo com os defensores desse argumento, deturparia o modelo tradicional de família. Além disso, argumenta-se que esta é uma questão que deve ser tratada no âmbito familiar e não pela escola.
Para Marlene Tamanini, pesquisadora e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná – UFPR, trata-se de um equívoco afastar da escola a discussão sobre gênero e orientação sexual por se tratarem de temas que já estão presentes em todos os ambientes. Segundo Tamanini, mesmo que esses temas atravessem questões morais ou religiosas, repressão ou coerção, não é possível negar que eles se apresentam na rua, no transporte, em festas, em piadas, na publicidade. “É um conteúdo da vida cotidiana. A sexualidade sempre fez parte da vida cotidiana”, diz a especialista.
“O menino e a menina são sim diferentes, mas isso não significa que são desiguais. Temos usado, em sociedade, a diferença para construir desigualdade. Falar de ideologia de gênero é um desfocamento do argumento. A gente não faz ideologia de gênero, a gente trabalha com a diversidade de gênero, com a possibilidade de a escola, a universidade e a sociedade serem espaços de promoção de debate e que não gerem um silenciamento em relação às formas como as pessoas podem viver a diversidade da experiência humana”, afirma Tamanini.
Vanessa Leite, coordenadora de formação do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – CLAM, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, argumenta que gênero e sexualidade já estão na escola. “Há todo um alarde envolvendo discursos religiosos e de defesa da família que, para mim, escamoteiam a discussão fundamental. Gênero é toda nossa constituição enquanto masculino e feminino, todas as relações entre masculinidade e feminilidade na sociedade. Quando digo que gênero e sexualidade já estão nas escola, é porque a escola desde sempre trabalhou com uma certa forma de entender o que é do masculino e o que é do feminino”, explica.
Já Belinda Mandelbaum, professora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade da Universidade de São Paulo – LEFAM-USP, considera o argumento que cita a chamada “ideologia de gênero” uma redução da questão. “A ideologia pode ser considerada no debate, mas o conhecimento sobre as questões tratadas provêm de informações e pode permitir a ampliação da consciência. A escola, claro, não é lugar para se fazer propaganda, mas quem acha que a discussão vai se reduzir a isso tem uma concepção distorcida do que a escola pode fazer em relação ao tema”, avalia.
O papel da escola
De acordo com Mandelbaum, a discussão de gênero e sexualidade na escola é uma questão muito antiga, presente desde os programas de educação sexual pensados no âmbito da escola a partir de meados do século 20. “Terem retirado esse tema dos Planos de Educação é um grande retrocesso na nossa história recente. O que se está perdendo de vista é que esse é um tema que, com suas especificidades, pode e deve ser tratado tanto na família quanto na escola. E não é porque a escola não vai tratar do tema que ele desaparecerá da escola”, avalia.
Leite observa que as crianças, desde muito pequenas, são ensinadas sobre o que a menina deve e não deve fazer, qual o lugar do menino e que comportamento é esperado dele. “As crianças já estão sendo educadas em relação a uma certa ideologia de gênero, uma certa forma de entender qual o lugar do masculino e qual o lugar do feminino. Essa temática, então, sempre esteve em todas as instituições quando, por exemplo, os meninos vão jogar bola e as meninas vão brincar de alguma coisa mais delicada e quieta na hora do recreio. Isso é gênero na escola”, explica a pesquisadora.
Tratar, na escola, de temas como gênero e sexualidade, de acordo com Tamanini, significa, portanto, reconhecer sua existência como parte fundamental da experiência humana em suas diferentes possibilidades. “Falar sobre sexualidade é parte da construção do respeito à diferença e parte da responsabilidade política institucional na construção de uma sociedade que reconheça os processos de diversidade e que encontre nesse caminho uma forma democrática de diálogo com as múltiplas possibilidades de ser humano, de viver a vida”, destaca.
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Bernardo Vianna / Blog Educação