* Publicado originalmente em 25 de abril de 2018 no portal Mães de Jundiaí.
Eu estava sentado no chão da sala e Maria corria ao meu redor cantando “corre cotia na casa da tia”. Depois apontava para a palma da mão: “cai cai balão aqui na minha mão”. E, rindo, provocava: “boi da cara preta pega papai”. Pode parecer meio bobo, mas aquilo me colocava um sorriso imenso no rosto. Se aprender a andar, falar e comer com a colher foram conquistas dela, aquelas cantigas ela aprendera comigo, assim como eu as aprendera com pais, avós, tios e professores.
Então eu havia pela primeira vez de fato ensinado algo da minha cultura para ela e ela recebera essa herança como se fosse um presente embrulhado, daqueles que puxar a fita já é uma brincadeira. E, assim, minha maior preocupação passou a ser conseguir espremer de minhas primeiras lembranças todas as cantigas, versos, fábulas, histórias, parlendas que alguém em algum momento me ensinara. Pois antes dos conteúdos escolares, a primeira forma que nossa espécie desenvolveu para transmitir informações para as gerações mais novas foi esse mecanismo de memória e de construção de laços acionado e movido pelo afeto.
Pesquisei algo sobre a função das histórias na formação das crianças e encontrei referências ao trabalho da educadora Luiza Lameirão, uma das responsáveis pelo Centro de Formação de Professores Waldorf, em São Paulo. Se bem compreendi, as histórias permitem a transmissão de valores e de imagens arquetípicas fundamentais para a construção da subjetividade e também servem para despertar o raciocínio e o interesse da criança para formas de agir e estar no mundo e, assim, estruturar sua personalidade. Sempre que canto ou conto uma história para Maria, estou transmitindo valores para a formação de sua identidade cultural e de sua forma de estar no mundo.
Passeando um pouco mais pelo tema, encontrei este belo trecho no manifesto da A Taba, uma empresa de curadoria de livros infantis e juvenis: “Toda criança tem direito de ouvir histórias, narradas por um adulto que amorosamente compartilhe suas leituras, ajudando-a a construir sua própria casa de palavras. Histórias de livros, histórias da família (reais ou inventadas), cantigas, adivinhas, parlendas, contos, causos…toda criança tem direito a receber as palavras de seu povo como herança”.
Então cantar e contar histórias para os pequenos vai muito além de um momento de distração, ou de tentar fazê-los dormir. É educar e é tão importante quanto sentar ao lado deles para estudar para uma prova. E é também um momento de sentir o pequeno prazer de completar ciclos da vida. É um momento de transmitir para eles um pouco do que você é.