* Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural em 17 de outubro de 2014.
Além do boxe e do jazz, a fotografia também era um tema que Julio Cortázar, autor mágico-realista argentino, gostava de visitar. Em As Babas do Diabo, um dos contos reunidos na coletânea As Armas Secretas, Cortázar escreve: “Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros”.
O conto, de 1959, inspirou o roteiro de Blow-up – Depois daquele beijo, do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, lançado em 1966. O filme conta a história de um fotógrafo de moda que descobre a cena de um crime ao ampliar uma de suas fotografias. A partir desse enredo, Antonioni aborda, ao longo da narrativa, dos estereótipos relacionados à figura do fotógrafo aos intrincados jogos entre objeto e representação que se desenrolam por trás da composição de imagens.
O conto de Cortázar e o filme de Antonioni são referências que ilustram a recomendação feita aos aspirantes a fotógrafos pelo crítico, curador e pesquisador Eder Chiodetto, para quem a sensibilização do olhar ou o aprendizado da fotografia não deve estar restrito à própria linguagem fotográfica. “Sintetizar ideias, discursos e metáforas por meio de imagens implica obrigatoriamente num saber humanista, numa visão pluralista do mundo. Para se chegar à fotografia é preciso literatura, antropologia, história da arte, cinema, música de qualidade, viagens para conhecer outras culturas, todo movimento que leve você a conhecer o mundo e as pessoas mais livre de dogmas e preconceitos”, diz.
Para Gal Oppido, fotógrafo, arquiteto, músico e desenhista, o interessado em desenvolver um trabalho em fotografia não pode perder de vista a essência dessa linguagem: a imagem. E a razão para explorar essa imagem deve ser o fato de que ela o inquieta. “A pessoa precisa ter claro que o que interessa a ela é o meio de expressão que a permita construir um discurso específico sobre a relação dela com a vida. A ideia é que a imagem, para surgir, precisa passar por dentro de você”, diz Oppido. Dessa forma, ampliar o repertório, segundo o fotógrafo, é criar um conjunto de ferramentas mais completo para que se possa retirar do seu entorno aquilo que se quer expressar.
Trata-se, para Oppido, de um exercício obsessivo. “O principal mecanismo da fotografia é perceber que aquela imagem que se insinua para ser captada ainda vai passar por um longo percurso até chegar à fotografia. A imagem, quando você a vê, é tridimensional, o perímetro do seu olhar não é um retângulo como o da foto. É uma deformação muito grande, de um espaço tridimensional para um espaço bidimensional, inscrito dentro de um quadrilátero estático. A pessoa terá que pensar esse percurso a partir da acomodação final da imagem. E isso depende de muita prática, de exercícios cotidianos para que o que você vê e o que você representa tenham maior cumplicidade”, afirma.
Já Claudio Edinger, dedicado à fotografia documental e jornalística desde a década de 1970, prefere enumerar os elementos que considera essenciais para a formação do olhar do fotógrafo: “pesquisa – muito estudo; produção – determinada pelo interesse individual; edição – eliminar tudo o que não for absolutamente essencial; e meditação – ter uma forma de acessar o inconsciente”. A recomendação de Edinger para o fotógrafo iniciante que busca ampliar seu repertório ou encontrar uma identidade própria para o seu trabalho enfatiza esses elementos. “Praticar intensamente, o tempo todo, esses quatro itens”, pontua.
Inflação na produção de imagens
Com o avanço das tecnologias e a disseminação das câmeras digitais, uma das grandes revoluções por que passamos, de acordo com Chiodetto, é o fato de hoje sermos todos fotógrafos em potencial. “Não só nos tornamos todos produtores de imagens, mas também propagadores da nossa produção e consumidores vorazes das imagens dos outros”, observa.
Curador de mais de 60 exposições de fotografia nos últimos 10 anos, Chiodetto lançou, em setembro, o livro digital Curadoria em Fotografia: da Pesquisa à Exposição, disponível para download em seu site, projeto selecionado pelo Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2012. No livro, o curador fala sobre como a ubiquidade da produção e propagação de imagens criou um enorme contingente de público que passou a frequentar exposições de fotografia e a consumir livros. “Haja vista, por exemplo, a explosão dos fotolivros no mercado de arte. Um fenômeno interessantíssimo”, pontua.
Por outro lado, a voracidade do consumo, de acordo com Chiodetto, pode levar a uma relação, em alguns aspectos, menos aprofundada com as imagens. Apesar disso, essa convivência com as imagens fotográficas, uma linguagem universal, que ultrapassa as barreiras do idioma, está gestando novas formas de comunicação e de elo entre as pessoas, acredita o pesquisador. “Nesse momento vivemos ainda um momento de euforia desenfreada, de uma inflação na produção de imagens sem muita reflexão a respeito dela. Mas é notório que muitos desses amadores já começam a perceber que essa pode ser uma forma genuína de expressão em vários campos da vida. Prova disso é o sucesso dos cursos livres de fotografia”.
Oppido, por sua vez, não crê em uma diluição da reflexão sobre a imagem. Para ele, os avanços tecnológicos mais recentes são apenas mais uma etapa de uma longa relação entre a humanidade e a imagem. “A visão foi o sentido que mais nos instrumentalizou desde a primeira inscrição em uma caverna ou desde a primeira fotografia – o momento em que o homem percebeu seu reflexo em uma superfície pela primeira vez. A fotografia, então, é percebida desde o início dos exercícios de visão do homem”, afirma.
“Se imaginarmos uma família há 40 anos, o pai comprava um filme que era caríssimo em relação ao orçamento da família e mal saía uma foto que prestasse, saíam cortadas e tudo o mais. Hoje, esse pai de família está lá no parque falando ‘encosta mais aqui, vem mais pra cá’, há mais domínio sobre a construção da imagem”, argumenta Oppido.
Aprendizado
Questionado sobre sua opinião em relação à necessidade de algo como uma graduação em fotografia, Edinger diz preferir um viés mais informal, em que o próprio artista pesquise tudo o que lhe interessa e se aprofunde nisso. “Estudos formais são massificantes por definição. O artista tem que encontrar seu próprio caminho. Mas se não conseguir, claro, é melhor fazer um curso. Isso não se aplica a workshops pontuais e curtos, claro, estes são sempre muito bem vindos. Quando posso também faço, precisamos nos renovar sempre”, afirma.
Para Oppido, que ministra cursos de fotografia no Museu de Arte Moderna de São Paulo, seria interessante um formato híbrido, um curso de nível superior que não demandasse quatro anos e com conteúdo voltado para a história da arte e para a tecnologia. “Mais ou menos como fez a Bauhaus no começo do século passado, pensar em como a tecnologia que está se apresentando agora em todos os trabalhos se resolve eticamente e esteticamente, criar uma cumplicidade maior entre tecnologia e vida”, sugere.
Já Chiodetto destaca como o trabalho do estudante de fotografia evolui rapidamente a partir do momento em que é colocado à prova em um grupo de estudos ou na sala de aula de um curso, momento em que são discutidos conceitos, referências, formato e edição. “É importante estar em rede, entender que seu trabalho como fotógrafo surge a partir da relação que você tem com o mundo, da forma como você é levado a perceber o seu entorno e, depois, colocar esse trabalho no mundo também para ver como essa informação é recebida e transformada”, explica.
Por fim, embora considere que a alfabetização visual vá acontecendo naturalmente, sem que seja necessária a intermediação de um programa formal específico, Chiodetto concorda com Cortázar sobre ensinar a linguagem da fotografia desde muito cedo às crianças. “Já passamos da hora de implementar a fotografia e todo o campo de estudos que a ronda como disciplina obrigatória nas escolas desde a infância”.
Bernardo Vianna / Blog Acesso
Imagem: Reprodução do filme Blow-Up – Depois daquele beijo
2 pensamentos em “Educar o olhar para a fotografia”
Grande Bernardo! Muito legal esse post, sobretudo pelo olhar positivo sobre o acesso à fotografia e o reconhecimento de que se trata de um fenômeno recente. Geralmente me deparo com visões mais recalcadas que tratam o acesso pela via da banalização da fotografia.
Valeu, Vitor!
Não esperava essa leitura do entrevistado sobre a apropriação da linguagem fotográfica por um público mais amplo. Achei interessante o ângulo que ele apresentou quando falou do pai “dirigindo a cena” ao fotografar o passeio da família.
Grande abraço!