Publicado originalmente no Blog Acesso no dia 16 de julho de 2015.
“Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, mas um dia afinal eu toparei comigo”, escreveu Mário de Andrade em poema de 1930. Entre escritor, poeta, cronista, músico e pesquisador, um lado talvez menos conhecido do modernista tenha sido o de gestor público de cultura. Ao assumir, em 1935, o Departamento de Cultura de São Paulo, órgão que antecedeu a Secretaria Municipal de Cultura, o intelectual paulistano colocou em prática sua visão de cultura como um bem comum cujo acesso deveria ser garantido a todos.
Enquanto gestor de cultura, Mário de Andrade também contribuiu para as políticas de preservação do patrimônio material e imaterial e para a educação infantil. Buscou valorizar a produção cultural das camadas populares, algo, para a época, inovador, e criou bibliotecas móveis para ampliar o acesso aos livros. Sobre a contribuição do modernista para as políticas culturais e a democratização da cultura, conversamos com o biógrafo Eduardo Jardim, autor de Eu sou trezentos — Mário de Andrade: Vida e obra, livro lançado pela Edições de Janeiro em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional. Confira a seguir.
Blog Acesso – Como você sintetizaria o conjunto de ideias que direcionou a atuação de Mário de Andrade como gestor público de cultura?
Eduardo Jardim – Mário de Andrade assumiu a direção do Departamento de Cultura em 1935, indicado pelo Prefeito de São Paulo, Fábio Prado, ligado ao antigo Partido Democrático. O Departamento foi organizado em várias seções: biblioteca, bibliotecas ambulantes, diversões, discoteca, teatros, parques infantis, cursos de folclore e organização de expedições etnográficas. O conceito que norteou as iniciativas de Mário foi o de expansão cultural. Ele tinha em mente dois sentidos de expansão. Significava, em primeiro lugar, difundir a cultura para todas as camadas da população – abrir o teatro, fazer exposições no Viaduto do Chá, e outras iniciativas. E significava também incluir a produção cultural das camadas desprivilegiadas no conjunto da cultura. Isto era inovador para a época e ultrapassava em muito as expectativas do seu grupo.
Blog Acesso – Como o pensamento estético dialogava com as proposições para a política cultural?
E. J. – A visão de arte de Mário de Andrade sempre sublinhou a sua dimensão social. Mário achava que a arte tem um sentido coletivo por dois motivos: faz parte da vida de todos os homens e é formadora das coletividades. Era natural que aceitasse o desafio de dirigir o Departamento. Era uma oportunidade de concretizar sua visão de arte social.
Blog Acesso – Como surgiu o interesse de Mário de Andrade pela cultura popular brasileira?
E. J. – Mário de Andrade entendeu que a modernização da arte e cultura brasileiras, isto é, a participação do Brasil no concerto das nações cultas, depende da afirmação dos seus traços nacionais. Cabia, então, definir o que é nacional. Mário de Andrade achava que os traços especificamente nacionais da cultura estão contidos na cultura popular.
Blog Acesso – Esse interesse, além de influenciar sua literatura, inspirou contribuições para o campo da etnografia e do folclore?
E. J. – Mário de Andrade identificou, ao menos em um primeiro momento, as culturas popular e folclórica. Isto talvez tenha reduzido sua visão do popular. De qualquer modo, o interesse de Mário pela cultura folclórica se tornou autônomo. Ele desenvolveu importantes trabalhos sobre isso, o que ocupou muito do seu tempo.
Blog Acesso – Podemos dizer que Mário de Andrade plantou a semente para o atual Iphan, tendo sido inovador também na área de preservação do patrimônio?
E. J. – Sim. Mário de Andrade foi chamado pelo ministro Capanema para fazer o projeto do Patrimônio em 1935. Quando foi criado em 1937, com direção de Rodrigo Mello Franco, o Instituto manteve, de forma geral, as propostas de Mário de Andrade, mas algumas muito centrais foram abandonadas – a própria noção de bem cultural era muito mais ampla em Mário, incluindo bens imateriais, paisagens e culinária.
Blog Acesso – Muitas de suas ideias, como a democratização do acesso à cultura, ainda estão presentes nas políticas de cultura atuais. Como você avalia o legado do projeto de Mário de Andrade para a cultura?
E. J. – De fato, houve algumas tentativas de recuperar as ideias de Mário, inclusive por parte dos órgãos oficiais, mas nunca houve uma avaliação mais crítica de seus conceitos. É preciso se inspirar em Mário de Andrade, mas não dá para acreditar que somos seus contemporâneos.
Blog Acesso – É correto dizer que o Estado Novo e a ida de Mário de Andrade para o Rio de Janeiro frustraram esse projeto? Como foi esse momento da vida do escritor?
E. J. – O afastamento do grupo político a que Mário estava ligado, no momento do golpe do Estado Novo, resultou no afastamento da direção. Foi um golpe muito forte para ele, já que sentia que seu trabalho dava sentido a sua vocação intelectual. Mário nunca se recuperou totalmente deste trauma. Foi para o Rio em busca de uma solução, mas também não foi feliz. A UDF [Universidade do Distrito Federal], onde lecionava, também foi fechada. Nos últimos anos, Mário de Andrade fez a revisão crítica de sua vida, do modernismo, e continuou escrevendo poemas belos, como A meditação sobre o Tietê.
Bernardo Vianna / Blog Acesso