* Publicado originalmente em VIA blog – Direitos da Criança e do Adolescentes em 10 de julho de 2013.
A criança autista tem que lidar com muitos estímulos visuais, auditivos e sensoriais que passam despercebidos para os alunos neurotípicos, ou “normais”, como explicou a psicóloga Sandra Roos. Para as crianças com transtorno do espectro autista, tais estímulos incomodam, agridem, representam mais um desafio. No entanto, o processo educacional, de acordo com a especialista, não é pensado nesses termos. “Não existe uma adaptação até que ela seja exigida”, afirmou.
Mãe de uma menina com 12 anos de idade com transtorno do espectro autista, a psicóloga enumerou algumas das dificuldades enfrentadas nas escolas, tais como as necessidades especiais em relação à coordenação motora fina para o aprendizado da escrita; a adequação da iluminação da sala de aula, uma vez que as crianças autistas percebem e se incomodam com a luz trêmula das lâmpadas fluorescentes muitas vezes já velhas e gastas; a necessidade de um ambiente que não disperse sua atenção, devido à dificuldade de concentração em geral experimentada por essas crianças; e a redução do barulho em sala de aula, dada a maior sensibilidade auditiva. “Mas, na prática, isso não acontece”, afirmou.
“Digo isto tudo pensando na minha filha e em seu ‘grau’ de autismo, que é leve e a permite participar do processo de inclusão. Mesmo para ela, as escolas não estão preparadas e os pais, via de regra, é que tem que lutar pelos direitos de seus filhos especiais”, disse Roos ao lembrar que, por lei, todas as crianças matriculadas nas escolas municipais e estaduais têm o direito de serem acompanhadas por auxiliar em sala de aula, sejam essas crianças autistas ou tenham outras deficiências comprovadas por laudo médico. “As escolas não têm hoje nem salas de aula nem profissionais preparados para atendê-las em suas necessidades. Professores e auxiliares estão se virando sozinhos, sem apoio ou preparação prévia”.
Marisa Furia Silva é uma das fundadoras da Associação dos Amigos do Autista de São Paulo – AMA SP, é presidente da Associação Brasileira de Autismo – ABRA e integra o Conselho Nacional de Saúde. Também tem um filho autista e há 30 anos milita em prol das políticas públicas para as pessoas com transtorno do espectro autista. Em relação a esse tempo, Silva observa que pouco se avançou. Segundo ela, o primeiro documento do governo brasileiro a referir-se ao autismo é uma portaria do Ministério da Saúde de 2002. Em 2009, o Estado brasileiro ratificou a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, documento que toma a acessibilidade como conduta para a garantia dos direitos individuais. Dois anos mais tarde, foi lançado o Viver sem Limite: Plano Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência e, no final de 2012, a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo passou a considerar, para todos os efeitos legais, o autista como pessoa com deficiência. Resultado da mobilização social de movimentos e associações de pais de autistas, tal processo conquistou, em 2013, como um de seus resultados, a publicação, pelo Ministério da Saúde, das Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo. No documento, salienta-se que, para que a atenção integral seja efetiva, as ações devem estar articuladas entre a rede do Sistema Único de Saúde, os serviços de proteção e assistência social e os de educação.
“Com a lei, os autistas estão garantidos na política da pessoa com deficiência, o que é muito importante”, afirmou Silva referindo-se à política nacional sancionada no final de 2012, que, entre outros pontos, tornou obrigatória a matrícula de alunos com o transtorno em todas as escolas. Por outro lado, a especialista lembrou que, antes de serem autistas, tais crianças são cidadãs e, portanto, tal documento trata da reafirmação de um direito já garantido.
A inclusão no sistema público de educação, no entanto, é ainda, na avaliação de Silva, um grande problema. “A inclusão da pessoa com autismo é uma inclusão específica”, salientou. Da mesma forma, as creches são fundamentais para o diagnóstico precoce. “A creche tem que estar preparada para um atendimento junto com a Saúde e com a Assistência Social. Sendo feito esse trabalho específico com essas crianças, não há dúvidas de que sua inclusão será menos traumática para elas, para as famílias, para os outros alunos e para os professores”, disse.
Segundo a psicóloga Sandra Roos, os benefícios terapêuticos da inclusão de crianças autistas nas escolas regulares encontram-se na área da sociabilização. “Convivendo com outras crianças e sendo incluídas nas salas normais elas têm que se adaptar às regras, aos combinados, e aprendem a se comportar de uma forma tradicional. Porém, eu só vejo benefícios se elas forem ‘respeitadas’ em suas particularidades e nunca forçadas a se relacionarem ou se comportarem como as outras. É preciso entender que seu funcionamento cerebral é diferente e não forçar, não impor. Elas devem se relacionar com outras crianças ‘quando’ e ‘se’ quiserem, pois não têm a mesma vontade ou necessidade dessa relação”, explicou a especialista. “Esse é um dos pontos em que a minha filha mais é cobrada na escola. Tenho sempre que orientar que o ‘normal’ não é obrigatório e que ela deve ser deixada sozinha se assim quiser, que ela se sente bem assim. Isso causa estranheza e ‘incomoda’ os outros, assim como tudo o que é ‘diferente’”, disse.
Para a psicóloga, a inclusão pode não ser o melhor caminho em casos mais graves, em que a criança não fala, não escreve e não se comunica por meio de figuras ou outros modos possíveis de serem utilizados em sala de aula. “Gostaria que os pais entendessem isso, a criança pode ser discriminada muito mais do que aceita e ela sofre com isso. Há relatos de mães de autistas que, após tentarem a inclusão, ouviram dos próprios filhos o pedido de mudança para uma sala especial, pois eles não se sentiam bem no meio dos outros”, disse.
Tanto a psicóloga como a presidente da ABRA concordam que é urgente preparar as escolas e capacitar professores e equipes técnicas. Ambas afirmaram, também, que a luta pela garantia dos direitos das crianças autistas é travada pelos pais, que muitas vezes são obrigados a recorrer à força da lei para que seus filhos tenham acesso à educação. “Se o aluno for aceito [na escola] e não receber a educação dada aos outros, a inclusão é falsa, é só fachada. Alunos mais comprometidos que são separados e enviados a salas de recursos ou retirados das salas de aula por incomodarem os outros – ou se incomodarem com os outros – não estarão recebendo o que foram buscar na escola. É comum deixarem estes alunos ‘perambulando’ fora das salas de aula porque eles não conseguem permanecer nelas. É preciso conscientização e informação, educar professores e comunidade a respeito das características e particularidades dos alunos autistas”, afirmou Roos.
Para Silva, é fundamental o apoio de políticas públicas no atendimento, que é oneroso para as famílias. “É um custo que o governo tem agora que minimizará custos futuros, pois as pessoas se tornarão adultos menos comprometidos. Nessa área o Brasil também acordou há pouco, ainda temos muito trabalho pela frente”.
Bernardo Vianna / VIA Blog