Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural em 7 de fevereiro de 2013.
Para João do Rio, cronista que melhor observou o Rio de Janeiro capital da república, no início do século 20, poder-se-ia, aos poucos, detalhar a alma nacional nos estandartes dos cordões – hoje chamados blocos – de carnaval. “Os cordões são os núcleos irredutíveis da folia carioca, brotam com fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio”, escreveu em artigo publicado pela revista Kosmos, em janeiro de 1906.
Assim como aconteceu na década de 1920, com a explosão das marchinhas, e na década de 1960, já com uma motivação mais política de ocupação dos espaços públicos, o carnaval de rua do Rio de Janeiro experimenta, ao longo dos últimos anos, outro momento de grande popularidade. “O carnaval de rua é uma manifestação cultural que traduz a identidade da cidade, uma manifestação cultural espontânea das pessoas, e o carioca tem orgulho desse estilo de vida, traduzido por essa maneira de brincar o carnaval”, avalia Pedro Augusto Guimarães, subsecretário especial da Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro – Riotur.
Diogo Eduardo, do Cordão do Boi Tolo e da Desliga dos Blocos do Rio de Janeiro, lembra que esse processo de retomada do carnaval de rua vem se desenvolvendo já há 15 anos ou mais. “É excelente o carnaval de rua ressurgir. O carnaval é uma manifestação de cultura popular e cultura popular não é feita nem por vanguarda nem por meia dúzia de intelectuais. É feita pela massa que vai para a rua e toma um espaço que é dela. A praça é do povo, então ela tem que ser tomada. O problema é como o mercado e o Estado percebem isso. Esse é o grande x da questão”, afirmou.
De acordo com o subsecretário da Riotur, entre 2008 e 2009 foram mapeados mais de 700 blocos em toda a cidade. “A cidade não pode ficar sendo surpreendida e as pessoas sendo alijadas do seu ir e vir em função de uma surpreendente aparição de um bloco numa rua sem ninguém estar sabendo”, afirmou Guimarães, que considerou como excessiva a quantidade de blocos de então, quando a prefeitura decidiu ordenar o carnaval de rua. “Agora, existe um planejamento, existem regras bem definidas sobre como os blocos podem sair, como eles podem desfilar, quais são os limites dos horários de concentração e desfile, que blocos podem sair em cada um dos dias. É uma forma para que a gente possa planejar a cidade para receber esses grandes eventos”, explicou Guimarães.
O modelo, porém, é alvo de críticas. Em resposta à ideia da prefeitura de que os blocos precisariam de autorização para se organizar, nasceu a Desliga dos Blocos, que considera a ação como um cerceamento de liberdade. “Criamos uma liga não oficial para fazer frente ao que entendemos como cerceamento de liberdade. Organizamos, então, a ‘bloqueata’, uma manifestação de blocos para tentar mostrar o nosso descontentamento com esse processo. Foi um evento, em agosto de 2009, com cerca de 3 mil pessoas na Praça XV, que conseguiu reunir mais de 10 blocos. A Desliga surgiu nesse contexto, quando começamos a ver as primeiras movimentações da prefeitura lançando editais para o carnaval”, contou Eduardo.
Para sair às ruas este ano, os organizadores dos blocos precisaram preencher um cadastro informando o histórico do bloco, sua estrutura e, entre outras informações, o local do desfile. Como ressaltou o subsecretário da Riotur, a tradição e o tamanho do bloco são os principais critérios de análise do cadastro. “Dessa forma, conseguimos fazer com que a cidade absorva esses blocos, regularizados perante todo o processo de autorizações”, explicou. Selecionada em concorrência pública, uma empresa particular organizará a operacionalização do carnaval de rua, atendendo exigências como a instalação de banheiros químicos, gradeamento, operação de tráfico e sinalização. “Estabelecemos essas medidas de forma a auxiliar o desfile dos blocos e a preservar o espaço público”, afirmou o secretário.
Eduardo lembra que, constitucionalmente, nenhum agrupamento precisa de autorização para se reunir em espaços públicos. “No máximo, é preciso fazer um comunicado à prefeitura ou à Polícia Militar. Só que o que a prefeitura quer é definir quem vai sair, onde, como, a que horas, definir quem sai e quem não sai. No carnaval desse ano, mais de 90 blocos foram negados”, disse.
Para os blocos da Desliga, que saem sem pedir autorização à prefeitura, o carnaval, transformado em produto turístico, é descaracterizado. “O mercado se aproveita de ter mais gente na rua, mais potenciais consumidores, e entra fortemente com propagandas, com uma série de patrocínios. E isso é muito estimulado pelo próprio Estado. É lindíssimo falar que tem o maior carnaval do mundo, que tem 2 milhões de pessoas no Bola Preta, que é maior que o Galo da Madrugada, mas é uma simples promoção que não se preocupa com a festa. Por exemplo, a prefeitura estimula que as pessoas vão para as ruas, consumam a cerveja da patrocinadora e não tem banheiro público”, observou Eduardo.
Guimarães discorda de que haja uma exploração publicitária excessiva. “Pelo contrário, existe uma marca, existe um produto chamado carnaval que é conduzido pela Riotur, que estabelece, inclusive, os limites dessa exploração publicitária. Existe uma marca chamada Carnaval de Rua do Rio de Janeiro e essa marca é estudada de forma abalizada. Com a participação do patrocinador, claro, mas foi o que possibilitou atender àquelas exigências que a prefeitura fez de forma a desonerar os cofres públicos e garantir uma melhor infraestrutura para o folião”, argumentou.
Nas ruas do Rio, alguns blocos já são vistos usando cordas para separar o público, com acesso à área delimitada controlado por seguranças, e comercializando abadás, como acontece nos trios elétricos baianos. A prática, porém, foi proibida, esta semana, por decreto do prefeito Eduardo Paes, que considerou irregular cobrar por espaço exclusivo em ruas públicas.
São esperadas, segundo o subsecretário da Riotur, cerca de 6 milhões de pessoas para o carnaval de rua carioca. Os blocos, para Guimarães, além de manter a tradição, promovem a imagem da cidade de uma forma positiva e estimulam o fluxo turístico. “A gente tem percebido que os hotéis têm ficado cheios com antecedência, não só na semana dos desfiles na Sapucaí, mas nas semanas que os antecedem, por causa dos blocos. Muitos turistas, nacionais e estrangeiros, vêm para a cidade e vivenciam, pulam e brincam o carnaval nos blocos. O carnaval de rua é a identidade do Rio de Janeiro, é um movimento que nasceu espontaneamente e, hoje, é preservado, valorizado e transformado novamente em um produto turístico”, disse.
Já para Eduardo, a partir do momento em que os blocos ficam uniformes, com as cores dos patrocinadores, é configurada uma descaracterização da manifestação popular. “E mais do que isso, não é uma simples questão cromática, a descaracterização vem de um modelo que a gente percebe já em curso, o modelo da privatização do espaço público, um processo semelhante ao que aconteceu na Bahia, de grandes trios elétricos, um carnaval para quem pode pagar”, afirmou.
Bernardo Vianna / Blog Acesso