Território do Brincar – A linguagem da brincadeira

Publicado originalmente em VIA blog – Direitos da Criança e do Adolescentes em 28 de maio de 2013.

Renata Meirelles, desde o início de sua formação em Educação Física, se interessou pelas manifestações corporais infantis, em especial por aquelas de crianças com realidades diferentes da sua. Desde abril de 2012, acompanhada pelo documentarista David Reeks, a educadora percorre comunidades rurais, indígenas e quilombolas, grandes metrópoles e cidades do sertão e do litoral, registrando o que expressam as crianças brasileiras por meio de seus brinquedos e de suas brincadeiras. As viagens são parte do projeto Território do Brincar e, com o apoio do Instituto Alana, seguem até dezembro de 2013.

O brincar, no Brasil, é um direito reconhecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que o compreende como aspecto do direito à liberdade. Também a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em seu Artigo 31, garante o direito ao brincar, ao tempo livre e à livre participação na vida cultural e artística. Para Meirelles, o brincar é a própria linguagem infantil. “A linguagem das crianças é vivida nas experiências que as cercam, incluindo, é claro, o brincar. Assim, seja pelos gestos mais espontâneos, por jogos e brincadeiras ou por falas soltas e desejos expressos, é possível ouvir o que há na essência da criança. A proposta do Território do Brincar é, justamente, dialogar com essa linguagem infantil”, explicou a especialista.

Em cada comunidade visitada pelo projeto é realizado encontro com líderes, educadores, familiares e crianças. Os objetivos e as dinâmicas do trabalho são explicados e são exibidos vídeos das brincadeiras de outras regiões. “A linguagem do brincar é entendida na própria brincadeira. Cada um, adulto ou criança, consegue ver-se na brincadeira dos outros, consegue sentir-se representado nas imagens que foram feitas bem distantes dali. Tivemos até um menino que não aguentou acabar de ver os filmes, saiu e foi construir seu próprio pião, como o que estava sendo exibido na tela”, contou.

Além das visitas a comunidades em todo o país, o Território do Brincar também desenvolve atividades com algumas escolas parceiras, como os diálogos sobre o que é observado nas diferentes regiões e sobre como esse brincar se reflete na prática do educador. O material produzido em campo é divulgado entre as escolas por meio de reuniões mensais via internet, quando se discute também a repercussão do conteúdo no ambiente escolar. Por sua vez, as escolas registram, no site do projeto, suas experiências.

Diversidade e temas comuns

A diversidade do brincar, segundo Meirelles, vai além das variações do repertório de brinquedos e de brincadeiras. “Temos interesse em investigar o que há em comum entre as mais diversas experiências e realidades infantis e compreender mais profundamente essa linguagem universal das crianças”, disse ao enumerar os diferentes temas trabalhados com as escolas parceiras ao longo do primeiro ano do projeto: a necessidade de viver o medo dentro da brincadeira; trabalho e exploração infantil; meninos caçadores; liberdade corporal; o imaginário dos brinquedos; e as narrativas existentes nas brincadeiras.

A pesquisa observou que determinadas brincadeiras se repetem. “Como se existissem certos temas que precisam ser vividos pelas crianças e a elas cabe tentar achar a melhor forma de experimentá-los. Brincar de casinha, usar ‘arminhas’ para caçadas de ‘guerreiro’, construir carrinhos e barcos, se esconder e ser achado”, explicou Meirelles. Também todo um repertório de brincadeiras tradicionais como pular elástico, pular corda, jogar amarelinha, pião, pipa e bolinha de gude ainda resistem em diversas regiões. “Para os adultos que acreditam que essas brincadeiras sumiram, um recado: não sumiram. Aliás, estão muito vivas e vigorosas em inúmeros locais, mas estamos sempre discutindo e olhando para as realidades em que esses gestos estão camuflados, aparecem com outras roupagens e os adultos não conseguem identificá-los como um brincar significativo”, disse.

Também a geografia de cada região contribui para diferenciar maneiras no brincar das crianças. Segundo Meirelles, morar no litoral, em regiões serranas, na floresta amazônica, no mangue ou em regiões áridas provoca gestos e ações diferentes no brincar que, somados às diferenças culturais, ampliam ainda mais a diversidade de brincadeiras. “A floresta pede grandes desafios corporais, o mangue é espaço de descobertas profundas, a aridez gera silêncio, e assim por diante. Essas são sutilezas que se percebe no gesto da criança. Lembrando, é claro, que não existem generalizações”, afirmou.

O discurso dos adultos sobre o brincar infantil

De acordo com a coordenadora do Território do Brincar, o que há de mais semelhante entre as localidades pesquisadas é o discurso dos adultos sobre o brincar infantil. “De norte a sul, da metrópole à aldeia indígena, os adultos são unânimes: as crianças não sabem mais brincar como antigamente”, disse ao explicar como o olhar dos adultos costuma mirar a infância que tiveram e que acreditam que se perdeu. “Estamos notando como o brincar não é o foco do olhar dos adultos, que, de um modo geral, assumem não saber do que brincam suas crianças. Conhecem apenas como eram as brincadeiras do seu tempo, ou dizem que, hoje, as crianças preferem as tecnologias ao brincar e, quando brincam, só o fazem com os brinquedos industrializados e caros. Todo o resto que venha da criança, da sua própria maneira de brincar, passa desapercebido pelos adultos”, explicou.

Da mesma forma, o modo como a criança lida com o tempo e o espaço em seu brincar seria também reflexo de como essas duas dimensões são apresentadas para elas. “Em geral, crianças que não estão recebendo uma carga intensa de propostas e deveres, institucionais ou não, e usufruem da liberdade do ócio, tendem a viver tempos alongados, passam horas na mesma atividade, e permanecem ativos no seu fazer até finalizar o que se propuseram”, explicou.

Fazer um barquinho de madeira de timbaúba, por exemplo, demora quase um mês todo. Primeiro é preciso ir buscar a madeira certa, deixá-la secar por semanas. Ir trabalhando nela dia após dia, até que seque e atinja o peso ideal para navegar. Depois é preciso fazer o mastro cuidadosamente e, só então, colocar o barco para navegar em regatas com os colegas. O tempo da espera, para quem vive em frente ao mar, não é penoso, é parte da vida, e, portanto, necessário inclusive no brincar”, contou a especialista ao falar sobre como o brincar reproduz o tempo do lugar em que a criança vive. Da mesma forma, a criança que vive cerceada pelo tempo acaba por não ter como dele usufruir, o que é prontamente assimilado. “A criança aprende rápido a ser fragmentada e superficial”, afirmou.

A especialista, porém, faz uma ressalva: “isso não significa que crianças de grandes metrópoles não estejam tendo a chance de viver relações profundas com o uso de seu tempo e que estejam cerceadas de espaços significativos para o brincar. Assim como não é verdade que crianças que moram em pequenas comunidades tenham todo o espaço do mundo para brincar”. Para Meirelles, os valores de cada família são responsáveis por definir os espaços e tempos da infância.

Bernardo Vianna / VIA Blog