Paulo Miguez

Paulo Miguez – Carnavais brasileiros

Publicado originalmente no Blog Acesso – o blog da democratização cultural, em duas partes, nos dias 26 e 27 de fevereiro de 2014.

Pesquisador do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – CULT, ambos da Universidade Federal da Bahia, Paulo Miguez é também membro do High-Level Experts Group on Creative Industries da UNDP Special Unit for South/South Cooperation. Entre suas principais áreas de estudo está o carnaval, que, para o pesquisador, é um elemento central da cultura brasileira. Em entrevista ao Blog Acesso, Miguez falou sobre as tensões entre o crescimento da economia do carnaval e a manutenção do patrimônio simbólico que a festa representa, comentando a organização social e econômica dos principais carnavais brasileiros.

Acesso – Como você sintetizaria o significado do carnaval no Brasil?

Paulo Miguez – Tem uma frase do Oswald de Andrade, que está no Manifesto Antropofágico, que diz que o carnaval é a religião da raça. Ele se referia, no caso, especificamente ao carnaval do Rio de Janeiro. Eu ousaria dizer que ele mirou no Rio, mas acertou no Brasil. A festa como um todo, mas o carnaval em especial, certamente, junto com os festejos juninos, ocupa um lugar absolutamente destacado na vida brasileira. Você que é jornalista tem a dimensão disso, a partir de um determinado momento do ano, pela quantidade de notícias que saem sobre o carnaval. E no cotidiano também, as pessoas balizam seu tempo em função do antes e do depois do carnaval. Não há a menor dúvida de que o carnaval ocupa um lugar destacado no corpo da cultura brasileira, seja nos grandes festejos, nos mais conhecidos, ou mais visíveis, como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, ou nas cidades médias, como as cidades históricas de Minas Gerais. São Paulo agora também retomou uma tradição de carnaval. O carnaval é um elemento central da cultura brasileira.

Acesso – Quais os impactos socioeconômicos do carnaval conforme ele se estabelece como setor da economia da cultura?

P. M. – Nos últimos anos, especialmente no caso baiano – no Rio de Janeiro isso já começa um pouco antes, a partir dos anos 1960 e 1970 – essa dimensão espetacularizada, midiática, vai se constituindo e, à volta dela, a dimensão mercantil vai ganhando corpo. No caso baiano, isso acontece a partir dos anos 1980, a gente pode observar aí a emergência de uma nova configuração da festa. Um dos elementos centrais que caracteriza essa nova configuração é a existência de uma economia da festa, de um mercado carnavalesco. Isso tem que ser avaliado tanto do ponto de vista dos seus impactos positivos, afinal trata-se de uma dimensão da economia da cultura importante, como também na perspectiva dos cuidados que uma transformação dessa natureza obviamente impõe à festa, especificamente, mas também ao campo da cultural como um todo. A relação entre cultura e mercado merece sempre grandes cuidados porque a cultura é muito frágil, e o mercado não se compadece dessa fragilidade, ele vai tentar submeter à sua lógica a dimensão simbólica dos fenômenos culturais. Não é diferente com o carnaval. Mas não resta dúvida de que essa economia é um elemento importante dos grandes carnavais brasileiros. Cada um deles tem uma economia distinta, se configura de forma particular, mas são economias que, hoje, em termos de movimentação de recursos, são bastante expressivas no Rio de Janeiro, em Salvador e também em Recife e Olinda, além de outras cidades médias brasileiras.

Acesso – Nessa tensão entre economia e cultura, o carnaval não corre o risco de se descaracterizar?

P. M. – Não resta dúvida de que essa emergência de um mercado da festa, de uma economia da festa, vai impor desafios. A gente pode brincar um pouco e dizer que o pano de fundo é a luta entre Dionísio e Apolo. Isso vai obrigar que cuidados sejam tomados, especialmente do ponto de vista do poder público, porque não serão os blocos que se transformaram em empresas, os camarotes, os interesses da mídia, os interesses da economia do turismo que vão cuidar dessa dimensão simbólica. Muito pelo contrário, vão procurar explorá-la. Então cabe esse tipo de cuidado, a formulação e a aplicação de políticas culturais que impeçam essa submissão da dimensão simbólica à dimensão econômica, regulando esse mercado duramente e fazendo com que a dimensão simbólica seja efetivamente o eixo central da festa. Há necessidade de compreender a festa como patrimônio cultural intangível sobre o qual o Estado tem responsabilidades, pois cabe ao Estado brasileiro cuidar do patrimônio brasileiro. Então não é a pujança desse mercado que deve cegar o Estado brasileiro no sentido de desresponsabilizá-lo em relação às políticas culturais e que vai permitir que esse mesmo Estado atue como mais um ator do mercado da festa. Esse cuidado é permanente, especialmente pela escala em que esse mercado se constituiu. Mas isso não quer dizer a gente deva pensar na possibilidade de uma festa com essa escala sem mercado. Uma festa nessa escala produz inevitavelmente circulação de produtos, circulação de serviços, compra e venda. Então o que é preciso é um cuidado grande, uma regulação apertada, uma governança democrática envolvendo todos os setores que fazem a festa para garantir que a festa continuará sendo, antes de ser um grande mercado, um grande fato de cultura.

Acesso – Você falava sobre a necessidade de se preservar o patrimônio simbólico frente ao crescimento da economia do carnaval. Poderíamos pensar na dicotomia entre os afoxés e os blocos de trio do carnaval baiano como exemplo disso?

Paulo Miguez – Com certeza, o caso de Salvador é um caso exemplar. Não faz sentido que a festa esteja disponível só para organizações carnavalescas que exibem musculatura do ponto de vista de recursos e de capacidade gerencial. Se assim for, você vai perder um conjunto de organizações que são fundamentais para a vida carnavalesca, que encarnam tradições extremamente importantes, mas são organizações que, evidentemente, não são de mercado. Os afoxés, por exemplo. Os afoxés são os candomblés de rua, são uma extensão dos terreiros, então não é possível que se olhe para eles exigindo competência gerencial para disputar patrocínios no mercado. Sobre eles deve se debruçar um conjunto de políticas culturais que garantam sua presença na festa, que garantam sua visibilidade na festa. Essa é uma disputa permanente que tem que ser travada e, volto a insistir na expressão, requer uma regulação muito forte do mercado para impedir que ele determine os caminhos da festa, que determine sua forma de organização e que defina quem pode e quem não pode participar da festa. Isso em qualquer dos carnavais, mas estou me referindo especificamente ao carnaval da Bahia, que tem uma configuração muito particular do ponto de vista da economia pela emergência dessas empresas de lazer que são os blocos de trio. No caso de Salvador esse cuidado é certamente algo que se impõe a olhos vistos, não é preciso fazer muito esforço para a gente ver que esse problema está aí e precisa ser enfrentado.

Acesso – E como essa questão se reflete em termos de público?

P. M. – O carnaval aqui de Salvador tem a presença dos afoxés, a presença de blocos afro, a presença de algumas manifestações carnavalescas de corte comunitário, como é o caso da Mudança do Garcia, que é uma das mais antigas. Independente do fato de eles terem muitas dificuldades, por conta de sua visibilidade, por conta dos horários em que desfilam, dos locais em que marcam sua presença na festa, você vai ter para todas essas organizações um público sempre muito interessado. Agora, uma característica aqui presente, do ponto de vista de público, está muito ligada a um fato que é relativamente novo no carnaval da Bahia, é algo q acontece exatamente no momento em que essa configuração de mercado vai se anunciando, vai se consolidando, que é a presença de um sistema de estrelas [ou star system, termo originalmente utilizado para descrever o sistema de promoção do cinema clássico hollywoodiano por meio da visibilidade de celebridades e de sua glamourização]. Isso, obviamente, por força da mídia, por força das estrelas da cena artística brasileira e local que vão carregar um público bastante grande, inclusive estabelecendo um fenômeno que você não via nos carnavais anteriores à metade dos anos 1980. Até os anos 1980, aproximadamente, a fidelização do público se dava pela relação com o bloco, as pessoas eram fiéis a um determinado bloco, quem saía em um bloco não saía em outro, em uma espécie de fidelização clubística como a gente vê, por exemplo, no futebol. Com a emergência do mercado e o surgimento desse star system, a fidelização passou a ser o artista, as pessoas não tem interesse no bloco, tem interesse no artista que vai cantar no bloco. Evidentemente aí você tem a concentração do grande público, mas as outras manifestações continuam tendo uma plateia atenta, interessada, dedicada e que, regra geral, costuma reclamar da falta de visibilidade das outras manifestações carnavalescas.

Acesso – Houve uma retomada desse carnaval à margem do star system? Os blocos de rua cariocas seriam um exemplo?

P. M. – Nos últimos 10 anos estouraram a boca do balão no Rio e agora em São Paulo também. Eu acho que são a prova mais evidente de que Rei Momo é muito mais forte do que qualquer tentativa de encapsulamento dele, de captura dele, de formatação dele num padrão exclusivo. A beleza e a grandeza dos desfiles de escola de samba no Rio e em São Paulo, como também em outras cidades, acabou dominando a cena carnavalesca, mas, por outro lado, fez com que nos últimos anos essas manifestações tenham se revigorado, uma vez que nunca deixaram de existir. Esse modelo que enclausurou a festa num formato espetacularizado, acabou por reforçar a presença desses blocos nos bairros e revigorar sua presença na cena carnavalesca. Isso é um sinal de vitalidade da festa, o revigoramento de manifestações, no caso do Rio de Janeiro e também no caso de São Paulo, dos blocos de bairro. Aqui na Bahia isso tem acontecido um pouco também. Nas franjas, nas margens do carnaval da centralidade dos desfiles dos blocos, há a ocupação, em outros momentos do período carnavalesco, das ruas por organizações que estão distantes dessa lógica empresarial, que não estão interessadas nesse tipo de prática e retomam o velho espírito carnavalesco. É o que acontece hoje em Salvador quando, na quarta-feira à tarde, você tem uma quantidade já bastante expressiva de pequenos blocos, nenhum deles recorrendo àquilo que se transformou no grande equipamento do carnaval, o trio elétrico. São blocos que desfilam, que participam da festa com as bandinhas de sopro e percussão, numa lógica completamente diferente daquela que nós podemos observar ao longo dos dias oficiais da festa.

Acesso – Essa retomada trouxe a questão da regulação do carnaval de rua, criticada por muitos blocos. No Rio, por exemplo, há a Desliga dos Blocos fazendo essa crítica. Como você vê isso?

P. M. – Acompanhei essa discussão no Rio de Janeiro e há uma discussão muito parecida também em São Paulo, onde houve agora um decreto regulando os blocos, cuja presença não é exatamente um desfile com as características que você tem aqui na Bahia. Isso reproduz velhos conflitos da festa, o desejo pelo extraordinário, o desejo pelo rompimento das regras evidentemente vai enfrentar a necessidade que o poder público tem de regular o espaço urbano, de determinar formas de ocupação desse espaço urbano durante a festa. É uma tensão que está estabelecida e que não tem exatamente uma solução final. Vai haver sempre a vontade da transgressão, porque o carnaval é transgressão, para imaginar um carnaval sem transgressão, a gente vai ter que mudar o nome, porque deixa de ser carnaval. Mas não resta dúvida de que em cidades com uma vida urbana complexa, como é o caso do Rio, de São Paulo, de Salvador e de qualquer outra grande cidade, a ocupação do espaço público durante a festa vai exigir um mínimo de regulação, assim como vai exigir a prestação de serviços e de infraestrutura pelo poder público. É impossível uma festa desse tamanho, por exemplo, sem banheiro público, sem organização do trânsito, sem a garantia do ir e vir que pessoas que não estão participando da festa precisam ter. Enfim, essa tensão é permanente, mas acho muito interessante a ideia da Desliga. Ela representa antes de qualquer coisa o velho sinal de que o carnaval é o momento da transgressão, do drible na norma, o momento em que você pode produzir aquilo que o cotidiano não lhe permite. Essa é uma tensão permanente e cabe ao poder público atuar em relação a isso com a maior generosidade possível, com o cuidado necessário, porque se trata de uma vida urbana que é complexa, que envolve atores os mais diversos. Que o poder público atue acima de tudo com generosidade e abra mão do caráter de repressão com que historicamente, em alguns momentos mais, em outros menos, tem atuado em relação às festas públicas brasileiras.

Bernardo Vianna / Blog Acesso

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